Insónia


Às cinco da manhã levei um tiro no peito
Abri a porta e lá tavas tu de corpo feito
Disseste-o com rosas mas  senti cada espinho
Gelou o meu corpo essa merda de baton no colarinho
Desde o nosso encontro que as olheiras são só minhas
Visto-as de noite e não as tiro de dia
Fazer queixinhas de longe me alivia
E contar carneiros é de muito pouca serventia na minha mente    
não faltas tu ao compromisso
Bates-me no pensamento como um relógio suiço
Na solidão da noite lá apareces tu fluorescente e o alarme soa       
no meu peito já desfeito às noites em branco     
seguem-se dias bem escuros em que não penso noutra coisa 
senão em dar-te murros
Brincaste com o meu corpo e eu gostei da brincadeira
Passaste-me foi a ferro e em plena passadeira

A culpa foi minha porque fui a toda a velocidade
Fiz curvas e contra curvas na tua imaturidade
Acabei por me espetar nos teus olhos castanhos
Que afinal não tinham porra de encantos tamanhos
O silêncio da noite grita todas as frases não ditas
Todas as vírgulas e os pontos e também as tuas fitas
A verdade é que tu foste uma grande armadilha
Não sei como pensei que fosses o homem-maravilha
Onde fui eu buscar que tinhas alguma magia
Agora só me provocas uma tal de aerofagia
Mas os anos passam e com eles vou aprendendo
Dentro do meu peito vou por uma ou duas pilhas
Estes dois meses foram tal e qual guerrilha
E eu fico sempre presa na porcaria da presilha
Vou é ter com o vitinho que as horas já vão largas
Vou contar carneiros enquanto tu fodes as cabras


Mr.

I get close to you and there’s no perfume alike

Can’t wait to feel you also after an exercise bike

You brainwashed me very much like the guy

Who was in charge of the entire Third Reich

Your lips approach mine and I am kind of hypnotized

At least that’s what I feel like inside my mind

You go away and it is like a hunger strike

Should I send you a love letter?

Or would you rather a night ladder?

Come on leave here your sweater

You’re most welcomed in my shelter

So close your eyes and take a leek

Let’s not play hide and seek because for you

I would twist my ankle every week

And no it is not like that

I am not a freak

But I look at you and my eyes go oblique

Call me romantic or just antique

This I cannot change and it is not a technique

You carry me up and down the mountain peak

And say my handicap darling then you wink

And I think about you and me and Mozambique

Wait let me explain I tell you again

I am not a freak it’s only that my parents taught me very well

Not to talk about sex and not to express

So I think I will just name all the countries instead

Or I think I better name all the countries in bed

Sou uma cama feita de fresco

Com manchas antigas de sangue.

Sou aquela boneca com roupas bonitas

E um vazio no peito onde cabem as pilhas.

Os bons Pais

Os bons Pais são aqueles que te amam antes mesmo de nasceres. São os que te vão procurar quando não consegues encontrar o caminho para casa. São os que não conseguem dormir quando estás triste ou doente. Os que se preocupam quando não comes legumes suficientes. Ou quando não arranjas emprego. São os que te dão conselhos quando a namorada te deixa. Mas são também aqueles que te tiram os óculos se usas daqueles cor-de-rosa. Os bons Pais são aqueles que acordam à noite para te darem água. São aqueles que te perguntam se estás bem e preocupam-se em ouvir a resposta. São os que te dão dinheiro para comprar cromos estúpidos para encheres cadernetas estúpidas. E aqueles que não te dão dinheiro se sabem que vais o gastar todo em guloseimas. São aqueles que viram os dias e as noites a trabalhar para que não te falte nada. São aqueles que fazem sacrifícios com um sorriso para que nunca percebas que é um sacrifício. Até porque eles não o sentem como tal. Os bons Pais são aqueles que dormem na sala anos e anos para que os filhos tenham finalmente um quarto. São os que voltam a dormir na sala para que te sintas bem recebido. São os que te apoiam mesmo quando a tua decisão é ir para longe deles. Porque só pensam no que é melhor para ti. Os bons Pais são aqueles que perdem a liberdade demasiado cedo mas nunca culpam os filhos disso. Os bons Pais são aqueles que se orgulham de ti quando tens bons resultados na escola e quando não tens bons resultados na escola. São aqueles que te perdoam mesmo quando és injusto e egoísta. Mas os bons Pais são também aqueles que mais sofrem. Em silêncio.

O meu Natal


O Natal para mim é a minha mãe, o meu pai, a minha avó, os meus irmãos Bruno e Pedro e eu: juntos. Nunca foram os embrulhos debaixo da árvore, mas quem os embrulhou; nunca foi a árvore verde num vaso de terra num canto da sala, mas o meu pai que ia connosco comprá-la, depois de longos minutos a escolhermos a mais bonita; nunca foram as estrelas e os sinos e os embrulhinhos pequeninos que enfeitavam a árvore, mas a minha mãe que se esticava para chegar aos ramos mais altos, ou o meu pai que me punha às cavalitas para ser eu a prender a estrela cadente bem lá no alto. O Natal para mim nunca foi o presépio debaixo da árvore, mas a cola, e o musgo e o barro e os tecidos e o corte e a costura nas tardes dos dias que eu, a minha avó e o Pedro passávamos a construi-lo; nunca foram as músicas natalícias mas a nossa casa sempre cheia de música que o meu pai colocava para tocar na aparelhagem da sala e que me tirava da cama logo pela manhã, sem maus feitios. O Natal para mim nunca foram as comidas, o bacalhau e o peru, o bolo rei e as filhoses, a mousse de chocolate ou o quente e frio; mas a minha mãe ao fogão e a minha avó a amassar o pão, os meus irmãos a espetarem os dedos gulosos na mousse e a levarem com o não de quem impunha a razão. O Natal para mim nunca foram os muitos presentes que se ganhavam mas a cerimónia lenta de os desembrulhar interrompida volta e meia com beijos e gritos de abre, abre, abre! Mas a vida corre, as crianças crescem e as coisas mudam. E neste Natal, pela primeira vez, não nos vamos reunir todos; os meus irmãos vão passá-lo nas suas casas, com os seus filhos, e também eles iniciam esta tradição que para nós não é mais do que ter a família reunida. Este Natal não vai ser a minha mãe, o meu pai, a minha avó, os meus irmãos e eu. Mas está tudo bem. Apesar de não poder passar com eles, eu sei que eles sabem que são dos maiores presentes da minha vida.

Schnell


Na Áustria o Natal passa rápido é schnell
Dá-se só uma prenda mas atenção é Chanel
O ritmo de vida é acelerado apressado
Mas há sempre tempo livre para o namorado
Se precisas de gelado vais ao supermercado
Mas cuidado sê rápido tem o Geld p’parado
Se te atrasas a meter as cebolas no saco
Coragem vais passar a viver sem um braço
Depender da tua Mãe não é vergonha é um estado
Temporário transitório ficaste sem ordenado
É verdade o teu sorriso não te paga a renda
E os teus anos já passaram não vais ter nenhuma prenda
Será que és culpado ou só mais um sacrificado?
A coisa estará feia ou será só para o teu lado?
Estás perdido no caminho não encontras o sentido
Quem te dera ter nascido sem o futuro de mendigo

Um dia bom para o Austríaco tem 1 grau positivo
O Sol vem ao meio-dia para eles assim é bonito
Esquece a vida de mendigo só há 3 dias de Verão
Não há um sem-abrigo ainda com essa ilusão
O quebab é o que te vale mas não enche um português
Habituado ao Bacalhau à Brás da dona Inês
Sem emprego sem ninguém bates à porta de quem?
Sempre podes corer para o colo da tua Mãe
Mais um futuro excitante que acabou nesse instante
Tens de ter paciência chorar é desgastante
É de certo um imprevisto não estavas à espera disto
Mas a língua não se empresta e Portugal é o que te resta
Faz as malas emigrante tu não falas fluente
Neste mundo civilizado quem te dá a mão mente
Posso até estar a ser um bocado demente
Se calhar só tive azar com toda aquela gente

Solidão como Companhia


Os dias imperfeitos agora são os meus eleitos
A tua perfeição não era mais q’um gesto feito
Devia ter percebido ninguém é tão perfeito
Demorou e enrolou mas explodiu o defeito
Levavas-me prá cama e eu ficava dormente
Mas parei de sonhar quero um bom presente
Quero um homem completo que me ame por dentro
O jogo meu  querido nunca foi suficiente
Por enquanto há um vazio ao meu lado no leito
É melhor do que viver com uma faca no peito
Eu ainda acredito num príncipe encantado mas
Até agora só passaram uns sapos molhados
Diz-me lá se o meu pé não dava pró teu sapato
Estou cansada de tentar sempre o mesmo par errado
És um puto grande puto que só pensa no jogo
Veste e despe o avatar mas não apaga o meu fogo

Colocaste-me num bote em pleno meio-dia
Eu senti-me abandonada totalmente sozinha
Com os meus olhos nos teus olhos eu perdi-me de vista
E o vento que senti foi a minha companhia
A tua voz não era mais do que um eco da minha
E o pensamento estava cheio de erva daninha
Virtual irreal e eu bem longe da mira
Fizeste da nossa vida uma grande mentira
Não chores não telefones vou dizer-te que não
agora não adianta passares a tua mão
é tarde o mal está feito e o leite derramou
não chegaste a tempo e a galinha já queimou
Decidi dizer adeus nem sequer ‘tás na estante
Tinha de acabar com isto estava a ser atrofiante
Já não era estimulante era pura perda de tempo
e a dor já era grande como uma grande dor de dente

Não sabes tu que a vida não é um Halo qualquer
Deixa o poker e os tiros e faz feliz a mulher
Não ouviste o que te disse nem o que te pedia
Perdeste este jogo e não tens mais uma vida
Game over
Game over

Prazo de Validade


Desde que eu me lembro a vida passa a correr
Mais que tudo isso é uma corrida p’ra morrer
Diz-me tu se a contagem do meu aniversário
São os anos que já fiz ou os que me faltam fazer
Eu sei que é difícil viveres só no presente
Tens de aprender a deixar ir o que temes perder
Nada é realmente teu nem a vida te pertence
Até a alma neste corpo é um estado latente
Lamentares-te com tudo é típico do mundo
Desculpares-te com a idade é puro teu refúgio
O que interessa é o que fazes ao longo do tempo
Mais vale 30 bem passados do que 80 anos de vento
Antes dos 18 não podia sequer pegar no carro
Vê lá se isso me impediu de pôr nos lábios um cigarro
Aos 50 ouvi dizer que chega a tal da menopausa
Já te disse que no sexo não faço não faço pausa

Eu não sou um iogurte com prazo de validade
Nem tão pouco uma foto num cartão d’identidade
Não me digas que vou tarde tu não sabes pr’onde vou
Sei que se não for agora a oportunidade voou
Do modo como falas fala um atum enlatado
Vives a vida preso a regras para mim estás entalado
Se te conto dos meus planos dizes p’ra eu ter cuidado
Não subas assim tão alto tu já foste magoado
Mas eu corro e vivo a 100 porque morrer é estar parado
Não me chames de falhado essa frase dá-me asco
Para mim já falhou quem nunca sequer tentou
Sou um cavalo alado eu não me fico neste pasto
Para ti é sempre tarde mas depois não mexes palha
Dizes que vivo pelo risco diz antes que eu arrisco
És uma ovelha no rebanho mas recusas-te a ver
Fiz só ontem 30 anos diz-me lá estou a morrer?

Na vida não faço pausa já disse não faço pausa
Ouviste não faço pausa repito não faço pausa
Palavra não faço pausa amigo não faço pausa
Esquece não faço pausa não faço não faço pausa
Quantas vezes tenho de dizer eu não faço pausa

Love-hate for Austria

Na Áustria o Natal é mais rápido. Janta-se em 5 minutos porque as salsichas comem-se depressa e ninguém tira os olhos do prato. Num minuto trocam-se as prendas porque só há uma prenda para a cada um. E como também não trocam beijos não se perde tempo com isso. O ritmo de vida é tão acelerado que qualquer austríaca que engravide, expulsa o filho depois do primeiro semestre.
Na Áustria, os bebés não são irrequietos. Não se conseguem mexer com tanta roupa. Também não choram, sabem o quão desconfortável é ter a cair dos olhos estalactites.
Na Áustria, as pessoas levam multa se não atravessarem na passadeira e andam mais depressa porque devagar correm o risco de congelar. Também não sorriem na rua para não resfriarem as gengivas. Em casa, se se riem, o riso é prontamente auto-interrompido e justificam-se aos familiares ou amigos. Nos supermercados, as caixas parecem linhas de montagem de uma fábrica. Se demorarmos muito a guardar as compras, ficamos sem os dedos.
Na Áustria, os deficientes podem andar sozinhos em todo o lado porque há acessos fantásticos para eles sejam totalmente independentes. Se não fosse assim não sairiam de casa porque não teriam quem os ajudasse. Todas as passadeiras de peões foram pensadas também para os cegos. Existe um som que orienta o cego para atravessar a passadeira. Mas o som está lá quer passem carros quer a estrada esteja vazia. Talvez seja por isso que nunca vi um cego na rua. Já foram mortos pelo sistema.
Na Áustria praticamente não há desemprego nem sem-abrigo. Os que dormem nos bancos de jardim morrem de frio. E também não há pedintes por aqui. Como pedir é crime, são imediatamente levados pela polícia. Talvez seja por isso que ninguém pede desculpa ou com licença. Se algum estrangeiro está a impedir o caminho, o austríaco tenta ultrapassar o obstáculo em silêncio ou espera que o estrangeiro acabe de atar o sapato. Não falam qualquer palavra mas depois emitem um som de desagrado quando o caminho está finalmente livre. Na Áustria, antes de qualquer pergunta a um desconhecido eles avisam que vão faze-la. Dizem, Uma pergunta. E continuam. Ainda estou um dia para responder: Uma resposta. Ou se a pergunta me surpreender, digo, Uma exclamação.
Mas também, na Áustria não é de bom tom perguntar que gritos foram aqueles ou porque é que a filha do fulano nunca mais foi vista. Talvez seja por isso que na Áustria seja possível guardar-se filhos na cave durante anos sem que ninguém note.
Para os austríacos, um dia divertido é passá-lo em filas para fazer snowboard e depois em filas para comprar salsichas. Para eles, um com 2 graus positivos e 5 minutos de sol que não aquece ao meio-dia é um dia bonito. Se não fosse assim, não havia dias bonitos na Áustria. Mas o que falta em calor, existe em organização. Na Áustria todas as regras são cumpridas e quando um estrangeiro não as completa até o ser-se atropelado por uma bicicleta se torna possível. Quem quiser viver a experiência, basta que em vez de andar nas faixas reservadas para os peões, ande nas faixas para bicicleta. Por norma ouve-se uma campainha que avisa a aproximação do ciclista e depois, o embate. Eles não param porque estão dentro da lei.
Na Áustria, a qualidade de vida é sem dúvida superior e está a léguas de países como o Brasil. Até os ladrões são diferentes. Os ladrões brasileiros roubam porque têm fome, os austríacos roubam de barriga cheia. Ladrões? Mas o que estou para aqui a dizer! Não há roubos na Áustria, há objectos perdidos.
E já vos falei da mania deles de apresentarem a pergunta antes de a fazerem. Eles dizem, Eine Frage, e blá blá blá. Pois, então agora falo-vos da mania de dizerem Achso! e que não, não são eles a espirrar. Significa, Ahhhhh, já percebo. Ora, eles dizem isso muitas vezes porque é complicado para cada um dos austríacos perceber o que o outro está a dizer. Isto porque para além de ninguém saber ao certo falar alemão, eles colocam os verbos no fim da frase. E as frases podem ser do tamanho de umas dez linhas. Quando o austríaco diz o verbo de acção que revela finalmente o que é ele foi fazer, o outro austríaco não tem outra resposta senão um Achso! (santinho) Pois, agora percebo, seria o que vocês portugueses diriam no fim da minha conversa toda se eu vos dissesse, Eu à cave da nossa casa com o meu namorado uns quantos tomates e uma Coca-Cola ontem ao fim do dia já escuro muito depressa porque amigos em casa tínhamos buscar fomos. O Achso viria naturalmente, e até com um certo alívio. Ninguém prendeu ninguém na cave, a cave também não foi o lugar onde a magia acontece, e finalmente entenderam que só lá fomos buscar uns inocentes tomates e uma Coca-Cola. Ufa. Mas há um outro perigo. Quando finalmente eles sabem o que é que se fez na cave, há grandes probabilidades de já não se lembrarem quem é que lá foi. Não é por acaso que o psiquiatra Alois Alzheimer era alemão. E a minha frase é uma brincadeira de bebé, comparada com as deles.
Mas há outras coisas estranhas, por exemplo, aqui, a rapariga não é do sexo feminino ou sequer masculino. Simplesmente, não tem sexo. É neutra (das Mädchen). Mas a cenoura (die Karotte) tem já todo o direito a ser do sexo feminino. Penso que isso seja porque a cenoura é rica em betacaroteno, que é importante para a pele e para as mucosas. Outra coisa estranha é a ligação entre as mulheres e as raparigas sem sexo com a bicicleta. Para começar, todas têm uma bicicleta. Uma mulher aqui na Áustria sem bicicleta não é uma mulher. Quando eu não tinha bicicleta elas nem respondiam aos meus bons dias. E não era por serem xenófobas. E por bicicleta entenda-se a bicicleta com cadeado, cestinha, capa de selim, corrente, bomba de ar, capacete, cotoveleira, joelheira, e outras nhanhanheiras. Mas até aí tudo bem, o problema pelo menos para mim passa por andarem de bicicleta com mini-mini-mini-mini-saias, com a perna para cima, perna para baixo, perna para cima, para baixo, calcinha com renda, perna para cima, perna para baixo, cuecas da avó, para cima, para baixo, cima, baixo. Conto umas cinco calcinhas por dia, isto porque a maior parte delas usa. Mas há coisas piores. O Danúbio, o Danúbio Azul que deu o nome à valsa do Strauss, e inspirou tantos outros poetas, fá-los-ia regurgitar os últimos jantares em vida. Nos seus bons tempos, ao longo dos 110 km, da nascente ao poente, o rio recebia mais de vinte pequenos mas cheios afluentes. Hoje são fios de água e condutores de esgoto e outros detritos. Até os pobres batráquios desapareceram. Quando o Strauss passeava pelas margens do Danúbio em câmara lenta, porque na altura era tudo mais devagar, era comum passar-se por famílias inteiras em piqueniques e ver-se os putos a aprender a nadar nas águas então cristalinas. Agora ainda se vêem muitas pessoas, mas a apanhar sol na relva e uns poucos malucos como eu dentro do rio lamacento. Mas ou vou lá para dentro envenenar-me ou a opção é esticar-me na relva a apanhar um sol enevoado ao lado de pessoas que não conhecem o hábito de usar um biquini ou calções de banho. Meus amigos, bitte, Enfiem-me num avião de volta para Lisboa, ou metam-me numa cave!

*Nota: Este texto é tipo uma caricatura. Não há qualquer má intenção e há muito exagero.

O nosso amor não morre

Absorvo o sangue do teu espírito
As nossas mãos estão frias
Como se eu nos tivesse tirado a vida
Mas o amor nunca morre
Só se esconde aqui no centro de mim
Batalho como alguém que pensa
Conhecer a alma das coisas
E como alguém que luta
Para recordar esse conhecimento
Mas falta sempre o que não recordo
Ganha-se a batalha e no chão
Soldados nossos mortos
Em morte paulatina
Perco cem mil homens num só
Exponho-me à carnificina por causa de ti
És o meu homem abstracto
Um ser inclinado que sorri
Do céu em queda livre.

Todos os dias

Tento ser com os outros o que sou sozinha.

Os teus olhos verdes

Sinto o zumbido de uma mosca na minha garganta
Sinto-lhe o gosto dos ovos postos na minha língua
Deixas as varejas no meu tapete vermelho
e eu contenho aos solavancos os vómitos dentro de mim.
Tu olhas para mim com os teus olhos verdes
Enquanto esfregas as tuas mãos uma na outra, uma na outra, uma na outra.

O meu nome é Sofia e moro com os meus pais na Pontinha

A minha casa da Pontinha cheira à minha mãe. Cheira a bolo de chocolate feito pela Olga. Cheira a jogos de xadrez com o meu pai, que desconfio que ou me deixa ganhar ou joga muito, assustadoramente mal. A minha casa da Pontinha sabe às manhãs de sábado, deitada na cama a ver os bonecos na televisão, e a pão com nucrema, ou nucrema com pão. Sabe àquelas pessoas de plástico de 9 centímetros às quais passo a vida a mudar as perucas e as pernas. Toma lá umas pernas azuis, para combinar com a camisa. É isso, a minha casa na Pontinha cheira a pernas azuis dos playmobis.
Mas hoje devo estar constipada. Deve ser isso, porque não sinto nenhum cheiro familiar. Estou de férias em algum lugar. Sim, porque hoje não acordei no meu quarto cor-de-rosa. Nem acordei com a minha mãe a subir de rompão os estores, porque está um dia lindo lá fora, nem com as músicas dos Platters, ou com canções italianas. Hoje a minha avó também não me veio desafiar para um crapô. E o meu pai não chegou a casa, nem pousou a pasta de médico, parecida com a pasta do Dr. Freud, no armário da entrada. Os miúdos não discutiram sobre quem levava o carro hoje à noite. O Pedro não atirou as culpas para cima do Bruno e o Bruno não se atirou para o sofá a ver televisão. Não está ninguém em casa, ou será que eu é que me evadi de mim? Não. Devo estar de férias.
Estranho. Quem é este homem que agora todas as noites dorme e acorda comigo? Que parece que sabe quem eu sou e do que é que gosto. Que sabe que tenho medo de morrer a dormir, e que tenho medo de enlouquecer. Mas quem é este homem sentado ao meu lado com um anel igual ao meu, e que sempre se adianta e pede uma Coca-Cola por mim porque sabe que eu não bebo outra coisa? É giro, não vou dizer que não, e de vez em quando dá-me beijos na boca, sabem bem, não vou dizer que não, mas não deixa de me ser um estranho. Um estranho que me conhece. Será que me é alguma coisa? Um parente afastado? Um primo afastado apaixonado? Não. Não sei quem é. E não é da minha família. Nós somos cinco lá em casa. Não há o que enganar nas contas. Sempre fomos cinco: A minha mãe, o meu pai, eu e os miúdos. A minha avó mora no quarteirão a seguir, tenho um tio-avô em Linda-a-Velha e uma tia-avó na Rua dos Soeiros, e é isso, não nos damos com mais ninguém. E lá em casa somos 5.
Estranho. Dizem-me agora que As minhas águas rebentaram. Mas eu não estou a chorar nem estou com a menstruação. Eu acho que sofro é de incontinência. Sim, sinto água a correr pelas pernas abaixo, qual fonte contrariada. Depressa, é o primeiro filho, acabei de ouvir. Mas filho de quem? O meu nome é Sofia e eu moro com os meus pais na Pontinha. Vestiram-me uma roupa azul, e gritam, repetitivos, Puxe, puxe. Vá lá, só mais uma vez. E eu, obediente e de pernas abertas, vejo um bebé a sair de mim, a chorar desalmadamente. Quem é ele? Parece um dos meus Nenucos mas eu sei que não é meu. Os meus Nenucos não choram, não funcionam a pilhas.

Ressaca de ti

Aquele copo ali na mesa que enche e se esgota em ti.
Gosto dele, bebe-me mais um pouco.
Aquele teu andar que encurta as distâncias e te faz misturar o teu lugar com o meu.
Gosto dele, bebe-me mais um pouco.
Aquele teu braço que faz a tua mão aproximar-se dele e aproxima a tua boca de mim.
Gosto dele, bebe-me mais um pouco nesse arriscado copo.
Bendita assombrosa lucidez do álcool.
Que te faz querer-me como eu te quero em água.

Isabel Amaral

Ela é um ano e dois meses mais velha do que eu. Eu tinha 4 anos quando nós nos conhecemos. Ela tinha o cabelo pela cintura, castanho e liso. Eu tinha o cabelo pelos ombros, normalmente separado em duas partes com dois totós vermelhos. Conhecemo-nos debaixo da mesa da cozinha, que ficava encostada a uma parede com azulejos azuis, e onde eu passava muito tempo porque gostava da sensação de ter um tecto por cima, e no qual pudesse tocar.
Tinha acabado de chegar de Faro, onde morei dos dois aos quatro anos, e fixámo-nos em Lisboa. Eu passei a morar no 3.º C, na casa da minha avó que sempre tratei por mãe. Ela morava no 1º C e era filha da porteira. Chamava-se Isabel Amaral e tinha primos com piolhos. Eu não gostava do Benfica porque o pai da Isa não a deixava brincar comigo, dizia a tudo que não quando o Benfica perdia. E o Benfica perdia muitas vezes. Eu não gostava dos primos dela que tinham piolhos. Volta e meia ela era levada pelos pais para a terra que se chamava Viseu para ir ao aniversário de um dos 15 primos que tinham piolhos.
Eu tive piolhos. Agora sei que os piolhos são insectos sem asas, de cor escura, pequenos, que se alimentam exclusivamente de sangue humano. Agora sei que os ovos dos piolhos são endurecidos e de cor branca tipo pérola e são chamados de lêndeas. São depositadas nos fios de cabelo, próximos do couro cabeludo, e deles nascem as ninfas que quando adultas depositam cerca de 80 ovos antes de morrer. Quando eu tinha 4 anos, as lêndeas não eram outra coisa senão os filhotes irrequietos dos piolhos, que gostavam muito de viajar, saltando facilmente de cabeça em cabeça. Nunca me importei de ter piolhos. Aliás, até gostava da extra atenção da minha mãe quando me revistava o couro cabeludo. Às vezes, e isto nunca lhe confessei, fingia ter comichão aqui e ali.
A Isa estava sempre presente. Lembro-me de brincar com ela e com os meus irmãos com legos e carrinhos. De nos construírem uma casa feita de lençóis na sala, presos por molas. Tendas anexadas a tendas. De nos sentarmos quietas e ansiosas pelo espectáculo de fantoches no beliche dos meus irmãos. De chorar desalmadamente quando o meu irmão Pedro incorporando o papel de cowboy maldito queimava os meus índios, depois de atados a paus e rodados sobre uma fogueira, tal espeto de javali grelhado sobre brasas. E da Isa deliciar-se a ver-nos a brincar, porque dizia que preferia ver do que estragar alguma coisa. Lembro-me do meu irmão Bruno me torturar com cócegas quando me ia buscar à escola primária n.º 2 da Pontinha. Lembro-me da Isa ter contado à minha avó que o Marcos me tinha dado um beijinho na boca, e de eu ter sido obrigada a lavar os dentes, os lábios e a língua com sabão azul e branco, quando o beijinho na boca fora na verdade um leve e tímido encostar de lábios muito juntos e esticados. Lembro-me de lhe contar estórias inventadas à pressão só para a distrair, porque ela estava triste. Lembro-me dela ser canhota e eu achar muita piada. E de com as nossas mãos termos feito um carro viajar até ao futuro, passando com o carrinho perto da rota de fios de algodão ensopados em álcool, e depois incendiados pelo meu irmão quase pirómano. Lembro-me de querer ser bombeira. E ela polícia. Lembro-me de partilhar todos os meus brinquedos com ela. De andar de bicicleta à volta do quarteirão, por turnos. Primeiro ela. Depois eu. Depois ela. Depois eu. E o meu Pai e os meus irmãos correrem atrás para que se caíssemos fossemos agarradas. Lembro-me dela a tapar a boca com as duas mãos, de ficar vermelha e parecer que podia explodir a qualquer segundo, e de me implorar que eu parasse de contar piadas porque ela não conseguia respirar se se risse assim tanto. Lembro-me de lavarmos as duas as roupinhas das nossas bonecas no tanque. Em dois tanques pequenos, feitos ao nosso tamanho, e que a minha mãe comprou para nós. Lembro-me de nos esticarmos para pendurar as roupas nos varais do 1.º C. Lembro-me de ficarmos as duas na varanda do 3.º C a olhar para o prédio alto e cheio de janelas iluminadas que ficava depois do descampado, onde eu costumava colher flores com a minha avó. E eu dizia-lhe frequentemente que eu ainda havia de morar naquele prédio de reis e rainhas, quando fosse crescida. E que a levava comigo. Lembro-me de lhe dizer, agora eras a policia e eu era o ladrão e tu tentavas prender-me porque eu tinha roubado as maçãs da mercearia do senhor Mário e da senhora Odete. Ela sempre quis ser polícia. Eu sempre quis ser um ladrão.
Lembro-me de tanta coisa. De a ter convencido a brincar às cabeleireiras na sala da casa da minha avó que sempre tratei por mãe. Ela, com a voz fina e instável de 5 anos, perguntava-me pela terceira vez, ó Sofia, não vais cortar a sério, pois não? E eu dizia-lhe, fica descansada que a tesoura é de brincar. Mas vira-te para a frente. Vira-te para a frente senão não brinco mais contigo. E ela virava-se para a frente. E eu cortar-lhe-ia o cabelo pelas orelhas. E ela agradecer-me-ia, porque assim ficava mais bonita. Sempre tive a certeza de que se eu lhe dissesse, faz isto, faz aquilo, senão nunca mais sou tua amiga, ela fazia. Uma amizade assim nunca mais tive.
Agora moro no 1.º B desse prédio que não tem reis nem rainhas, a senhora Odete morreu com um cancro, tu moras em Viseu e trabalhas numa fábrica de material de automóvel. Mas eu, quando vou visitar a minha avó, continuo a olhar da varanda do 3.º C para baixo, e procuro no varal as roupas das nossas bonecas penduradas. E por vezes, quando volto para minha casa, engano-me e vou bater ao 1.º C. Vamos andar de bicicleta. Vamos vestir e pentear as bonecas. Vamos brincar com plasticinas. Vamos cantar ao microfone. Vem brincar comigo, Isa, senão nunca mais sou tua amiga.

Tu e eu

Andamos os dois aos segredos,
Só porque sim.
E enches a minha vida
Só porque respiras.
Mas que grande amor se explica?
O barco pára, largamos os remos
E damos as mãos um ao outro.
Fecho os olhos e como um retrato
O teu rosto aparece-me na alma.
Dizes que me amas,
Eu não digo nada.
Mas na tua voz ouve-se tão bem a minha.
Os remos caem na água
O barco faz o que a água quer.
Embalada nesta ondulação ténue
Eu descanso em ti.
E este momento contigo
Sem pressa nenhuma
É a minha maior felicidade.
Os remos já não estão perto,
O barco segue para não sei onde
E eu sei que não quero mais ninguém
Comigo nesta viagem.

Dormente

Anjo ou deus,
Que me percorre a alma acariciando o corpo.
A ti só pedirei que me concedas o que nunca te vou exigir.
Porque tu és vadio...
Nem quieta nem inquieta espero pelo que o fado me trouxer
mas se me ergueres, erguerás ouro
porque sinto prazer, sinto dor
e porque para ti me dou como se nunca tivesse sofrido.
Mas tal como é, gozemos o momento.
Aguardando o amor como alguém que o conhece
E lhe reconhece os defeitos, os feitios.
E de longe vejo o cimo da montanha branca
e o sol que suave beija o gelo fazendo-o chorar de ventura.
Eu quero chorar com os teus beijos, Sol.
Quero que me descongeles, porque há muito tempo que sou geada.
Quero que me beijes os lábios solitários
Quero que me ocupes o corpo descampado
nas noites que caem doces sobre nós.
E quando o mar engolir a areia e arrastar com ele todos os castelos
Eu quero que o nosso subsista.
Porque tu és vício...
Dormente, a dormir sorrio.
Porque me pesas no corpo e me beijas a alma.
Gato vadio.

Mosca da azeitona

Estavas sentado à minha frente no comboio. Olhavas para a mulher rechonchuda sentada a teu lado, para o casal de namorados aos beijos no banco de lá, olhavas para mim sem disfarce, para o meu reflexo no vidro da carruagem, para o teu reflexo junto ao meu, e voltavas a olhar para a mulher rechonchuda sentada a teu lado. Os movimentos dos teus olhos eram hexagonais, como uma mosca da azeitona.
Comecei a ficar impressionada contigo quando me apercebi que repetias os mesmos movimentos, metodicamente, sem que no entanto observasses nada. A mulher rechonchuda, os namorados, eu e os nossos reflexos, eram simples pontos de foco.
E tu, sem fisionomia, seguias invariavelmente a mesma rota sem nunca chegares a lado nenhum. Eu desviava o olhar um segundo exacto antes de me transformares num dos teus pontos de foco. Fazia-me distraída, para depois reconciliar o meu olhar em ti. Na tua camisa com a gola bem engomada que me falava do teu perfeccionismo. No teu cabelo militaristamente penteado que me apresentava o teu pai, que te deixava de falar quando o teu cabelo castanho – de encantos tamanhos – crescia uns infelizes centímetros. Barba, penso até que nunca tiveste. E tu continuavas com o teu olhar de pestanas longas e escuras perdido em movimentos hexagonais, sem nunca me encontrares a olhar para ti quando passavas os olhos no teu ponto de foco preferido. Era em mim que te demoravas mais.
Entraste no curso de medicina, porque o teu pai assim pensou que querias, ou não pensou que não quisesses. Quando tinhas quase seis anos, a meio de um jantar de família o teu pai disse-te, António, levante-se e pule até eu lhe dizer que pare. E tu pulaste, até que ele se enfadasse com o barulho dos teus pés no soalho, até que ele se incomodasse com o barulho dos teus pés no soalho.
Dei por mim a olhar para ti fixamente. Lembravas-me uma mosquinha das frutas, engrenada na sua rota sem sentido. Paravas o teu olhar na mulher rechonchuda que sentada a teu lado se agarrava a uma revista cor-de-rosa, entretendo-se com as notícias de uma tia que engordou, ou de um casal que se separou. Tu, voltavas a desviar o olhar, voltavas a apanhar o casal de adolescentes que sem pudor tentavam chegar com a língua ao céu-da-boca do outro.
Já deves ter reparado, António – quieto como és – nas tuas moscas volantes. Nas sombras que aparecem sozinhas no teu campo visual, quando ficas parado a olhar para o vazio. Tu, António – quieto como és – já deves ter notado as moscas que às vezes são pontos, outras vezes linhas, ou fragmentos de teias de aranhas, que flutuam morosas em frente dos teus olhos. Dos meus olhos. E depois piscamos e elas sobem. Desaparecem. Foi o que me aconteceu contigo. Eu distraí-me e perdi-te de mim. Levanto-me da minha cadeira, na carruagem, e sou novamente uma menina com medo de fantasmas num corredor enorme e escuro, que parece nunca mais acabar. Pisquei os olhos e desapareceste. Até voltares a aparecer no dia seguinte no jornal. Tinhas te atirado para a linha do comboio. Chamavas-te mesmo António, e tinhas quase 20 anos. Quase vinte anos e eu não fiz nada. Quase vinte anos e eu limitei-me a observar os teus movimentos hexagonais. Quase vinte anos e eu fui apenas um ponto de foco para ti. Pisquei os olhos e tu desapareceste. E eu serei para sempre a menina com medo do teu fantasma num corredor que nunca mais acaba.

Lisboa branca

O meu telemóvel encheu-se de mensagens: Neve em Lisboa, vai à janela. Está a nevar, está a nevar. Neve em Lisboa. Lindo. Lindo. Tenho um programa óptimo para hoje. Queres vir construir um boneco de neve comigo? Está a nevar Sofia...
A neve caiu em Lisboa. Eu peguei no carro e fui até à casa da minha avó para ver, com ela, a neve cair. Disse-lhe: Desde que vi nevar pela primeira vez, que to quis mostrar. Como nunca quiseste vir comigo a um país que nevasse, trouxe a neve até ti. – Ela sorriu. Voltei para casa, e no caminho, todas as pessoas que passavam por mim, pela primeira vez, corresponderam-me com o sorriso que geralmente distribuo. Hoje, em Lisboa, a neve não foi só um fenómeno que consiste na queda de flocos de neve. E cada floco de neve não foi só uma precipitação de uma forma cristalina de água congelada. Foi um motivo de união. De partilha entre desconhecidos. De pessoas aparentemente indiferentes a tudo. A neve hoje aqueceu-nos. Branca. Pura. Limpou-nos. A neve hoje para mim foi isto. E parece que foi para quem mora no meu prédio. E para quem não mora no meu prédio. A neve circunscreveu-se na própria simbologia do branco, que sendo o somatório de todas as cores, traz em si todas as possibilidades de cor. Trouxe todas as possibilidades de bondade e de bons sentimentos nas pessoas.
A neve caiu em Lisboa. E levantou o sentimento de compaixão pelos que vivem nas ruas. Quando entrei no meu prédio, vinda da casa da minha avó, um senhor de barbas compridas e sujas, abriu-me a porta. Agradeci-lhe e subi. O meu pai abriu-me a porta. Não tinha barbas compridas nem sujas. Fui até à cozinha e aqueci a sopa de cozido à portuguesa. Peguei num casaco que ninguém usa e desci. E o senhor de barbas compridas deixou escapar de si uma gota de água, e disse-me: Ainda há pouco passou por mim um senhor, também deste prédio, que me deu este gorro, estas luvas, e este casaco. A sopa aqueceu-me tanto a mim, quanto a ele. E a neve em Lisboa, hoje foi branca.

Felizes para sempre

Sou uma criança que pensa em fadas
Em pós mágicos
Em abóboras voadoras.
Sou uma criança que acredita em fadas
Em sapatinhos de cristal
Em príncipes encantados.
Sou uma criança que fala com fadas
Sonha com bailes e não sabe que a vida não é um conto qualquer.

Devo ser muito inteligente

Porque hoje não estou a entender uma palavra do que digo.

Aromia Moschata, da família das Longhorn Beetles

Tirei o Sábado para ir com o Rob Tom Smith até à Riviera. Estava um calor daqueles que nos obriga a estar sempre a rodar tipo espeto na brasa. Tirei o carocha da garagem e fui a vinte à hora até à praia. No bar da Riviera comecei a ser causticada por pintas pretas em todo o corpo que depois de analisadas atentamente por mim, se transformaram em insectos pretos e peludos. Não me considero uma miúda da cidade mas quem me conhece sabe também que não sou um bicho do mato, por isso apercebi-me que o melhor para mim e para os bichos era um de nós mudar de lugar. Eles não se sentiram incomodados comigo, por isso, respeitei o ditado popular e mudei-me. Peguei na mochila, na toalha amarela e no Smith e fui para a areia terminar de comer o hambúrguer com batatas fritas. Saudável, sentei-me na toalha e em poucos segundos a toalha ficou preta com as mil patas de cada insecto. Enojada, sacudi-me e despi-me, como se estivesse atrasada para nascer, e nos meus mil-pés fui a correr para o mar. Mergulhei, nadei debaixo de água e vim à tona no local errado. Ia esbarrando com um cachalote. Tinha uma boca com dentes numerosos e bem desenvolvidos na maxila inferior e poucos ou nenhuns na superior. Quando voltei à toalha, já não havia hambúrguer para ninguém, já tinha deliciado os animais invertebrados da classe insecta, essa família com membros versáteis e diversificados, que quando reunida são mais do que todos os outros grupos de animais juntos. Para onde quer que olhasse no meu corpo via esses energúmenos superorganismos. Assemelhei-me a uma estância balnear no Algarve em pleno Agosto. Resolvi saltar do barco e mudar-me outra vez. A toalha, antes amarela, abandonei-a à sua sorte. Disse-lhe, Vira-te. E fugi para o estacionamento de terra, a perguntar-me se os bichos existiriam mesmo ou se seriam proveito da minha imaginação maléfica, porque mais ninguém parecia dar conta dos pontos pretos voadores. Depois de ter dado umas moedas ao velhote que nos costuma habilmente ajudar a encontrar um lugar perfeitamente visível, não resisti, olhei para todos os lados e vendo-me sozinha, decidi-me e perguntei-lhe, como quem não tem muito interesse na resposta nem duvida se estará a alucinar, Diga-me uma coisa, consegue ver estes bichinhos aqui? E ele tranquilizou-me quando disse, São insectos minha menina, não se preocupe, são só insectos. É do calor, é do calor. Ainda estou para perceber porque é que a partir de uma certa idade nos tornamos repetitivos. Será surdez ou amnésia? Será surdez ou amnésia?
Estive uns quantos minutos a sacudir-me agressivamente, e entrei no carocha. Fui para a praia do Castelo, cujo nome me faz sentir estupidamente segura. Trouxe o Smith junto ao peito, e levei a toalha vermelha que trago sempre no carro, qual pneu sobresselente. Na praia, deitei-me, levantei-me e fui novamente a correr para a água. Estive duas horas seguidas em pé na água, a tremelicar, e a sacudir-me dos insectos que pareciam confundir-me com mel. Ainda levei um ou outro piropo primário dos banhistas, cujos camiões estavam mal estacionados perto da praia, e que me disseram por duas vezes, pecando na originalidade, Sabe, é que a menina deve ser muito doce. Contrariamente ao que se espera de uma praia com o nome de Praia do Castelo, não vi príncipes encantados, só sapos com verrugas e novamente uns quantos cachalotes com fios de ouro pendurados ao pescoço e tatuagens a louvar as mães facilmente confundíveis com nódoas negras. Não vi príncipes, vi apenas um rapaz a ler a Bola, outro a ver a Maxmen, um homem a rodar o piercing do mamilo. Do dele, vá lá. Vi uma cachalote femea e velha a fazer topless de fio dental harmoniosamente bem escondido entre as peles. Um rapaz de uns 20 e poucos anos a ser barrado com creme protector nas costas, nos braços, na cara e no peito, pelo pai. Vi de tudo, só não vi um único príncipe. O Smith também não ficou muito contente com o dia de praia na Caparica, porque eu tinha lhe dito que estaria horas deitada, com o meu biquíni vermelho a comer com ele os bolinhos que acabei por não levar à minha avó, lendo-o de um lado ao outro, e o coitado do Smith acabou por passar o tempo todo na areia, sozinho e varrido pelo vento, pela areia e pelos insectos, entregue à bicharada.

As tuas palavras sobram

Passas e agitas a brisa que delira
e para ti sou sempre nova
A beberes nem me recordas
Bebes-me nos recantos em que me escondo
onde a água tem cor de vinho
e os ventos estão desatentos
E eu espero a chorar e choro um pouco mais
pelo meu homem tranquilo e transparente
que me deseja num desejo mal contido
Apagas o gosto da noite triste e lenta
e tragas as horas que findam já gastas
em nevoeiros e desencantos demorados
Desalgema-te das minhas mãos
Todos os dias imperfeitos são meus eleitos
porque a tua perfeição era mentira.

Do outro lado

Perturba-me ver-te imóvel e gélido
Quando o teu corpo sem vida se junta ao meu.
Perturba-me ouvir a tua voz que me impregna de frio
Quando a que penso ouvir é apenas um eco da minha.
Sem olhares para trás arrastas a minha sombra pelas águas
E carregas o meu corpo pelos campos
Até que me deixas abandonado em qualquer lugar
Onde me encolho e refugio no amor que por mim nunca sentiste.
Atravessa-me sem que eu te possa ver
Para que nem eu saiba do que morri.

Digamos o que dissermos

Não diremos senão o que nós somos.

Devolve-me a alma

Sangue insano.
Entraste no meu corpo excessivamente
E seguindo a minha vontade invadiste a minha casa
Arrancaste-me do chão rompendo-me a camisa.
E não tenho quem me cosa.
Traz a minha alma quando voltares.
Devolve-me a camisa rasgada.
Resgata-me do barco no meio do rio.
Eu que fui monotonamente abandonada ao meio-dia.
Que o meu corpo se transforme numa vela
E o vento do meu sofrimento me sopre para longe daqui.
Levarei na aragem o teu perfume, flagrante de mim.
E ficará nas águas o teu rasto distanciando-te de mim.
Sangue insano.
Deixa-me convencer os teus lábios de que dos meus recebes vida.
Desejei um mundo que só posso ver contigo.
Com os meus olhos nos teus, perdi-me de vista.
E não tenho quem me salve.
Resta-me apenas guardar e resguardar o nosso segredo
no escuro do frio,
Da noite antiga que se seguiu.

Granada

Que me explode na cara e me mata de novo.
O meu corpo cheira a destroços teus.

No escuro vou deixar de te ver

Quando nos encontramos no 202, é sempre tão cedo ou tão tarde que somos como dois evadidos que se descobrem na noite fugitiva.
Subimos para o nosso esconderijo e tu roubas-me as roupas. E com elas vai errante o músculo que bate ansioso por ti em mim.
Deitada ao teu lado, o meu corpo é a extensão do teu. E pela janela semi-aberta vejo os ramos das árvores pouco nítidos contra a cor do céu. Contra a cor da tua cama.
Deixas-me o corpo dorido.
E descubro que nos teus lábios é o sabor da dor que me atrai.
Extrais-me o sangue em movimentos ritmados e roubas-me o corpo num assalto desigual.
Eu roubo-te as roupas. Tu roubas-me a alma.
Ladrão.

Não te posso tocar

O teu corpo é um instrumento inútil para mim.

Sentado na primeira fila do teatro

Observas as minhas lágrimas em palco.

Quero-te

Sentada naquele banco alto que parecia que me ia deixar cair, disse-te numa noite: consigo tudo o que quero. Tu sorriste e mostraste-me bem o quanto eu estava enganada.

Pequenina

Sento-me num espacinho e cruzo as pernas. Penso se posso mantê-las assim, porque isso equivale a revelar as meias, e nem sempre as meias combinam com o resto da roupa. Descruzo as pernas, junto os joelhos e apoio os pés nas pontas dos dedos, guardados e amolgados dentro dos ténis. Senta-se uma senhora de uns 60 e poucos anos, mais ruga menos ruga, encharcada em perfume barato que escorre em gotas rechonchudas pelo colo. Sigo com os faróis dos meus olhos as lágrimas perfumadas que descem timidamente por entre os sulcos, e que acabam por manchar o decote em V da camisa preta com letras prateadas. Tento não respirar. Começo a pensar que esta mulher do decote e todas as mulheres e homens deste país que se sentam perto de mim, estão profundamente comprometidos na senda de poupar água. Para compensar, abusam dos frascos rumo à overdose. À minha overdose.
Vejo o metro como uma loja de perfumes. Sou constantemente canhoneada por cheiros que se misturam, provocando um efeito ainda mais derrubador. Inalo e exalo cada vez menos do ar conturbadamente perfumado e no intervalo automático descanso um pouco, para depois ser repetidamente atacada pelos perfumes que não são bem vindos. Maldigo a minha sorte. Difamo o metro. O início do dia. Quero morder as pessoas que usam perfumes. Apedrejo tudo.
Amuada, fecho os olhos e deixo de respirar. Escondo-me nesta cegueira imposta por mim, para folgar e abstrair-me de todos os olfactos e movimentos. De mal com a vida e com vontade de matar a velha, refugio-me no escuro até os meus pensamentos serem calados por sete batidas fortes em staccato. As sete pancadas sucessivas parecem aproximar-se e passo a ouvir a voz que as acompanha e que me faz abrir os olhos. Tenha a bondade de me auxiliar, por favor. – Diz o homem de óculos escuros, que lhe escurecem a paisagem sempre escura, com o braço esticado para a frente e a cabeça inclinada para trás, agarrando com a mão direita a bengala que o conduz.
Voltam as sete pancadas no chão, e eu sinto-me tão pequena que parece que caibo na palma da minha mão.

Os teus heróis são fantasmas

São mortos-vivos.
Que entram em guerras sem saber porque lutam.

Silêncio frio

Escuto o pestanejar pausado dos teus olhos e o silencio de cemitério do nosso campo de batalha. Vejo a tua boca que se vai silenciando. Assisto resignada ao teu olhar que se transforma em pedra. E deixo de sentir o teu corpo já translúcido.
Fico aqui contigo.
Fico aqui contigo com o meu ouvido junto ao teu peito.
Escuto-te até que deixes de bater.
Até que me deixes de bater.
Até que me deixes finalmente morrer.

Voltei a acreditar em fadas

(Dizes-me) Shhh, não contes a ninguém.
E esticas o teu dedo indicador encostando-o aos meus lábios.
Não conto, Amor. Mas voltei a pensar em fadas. Em pós mágicos. Em sapatinhos de cristal.
(Dizes-me) Shhh, guarda-nos para ti.
E a minha boca reage aconchegando-se à tua.
Não conto, Amor. Mas voltei a acreditar em fadas. Em vestidos prateados. Em príncipes encantados.
(Digo-te) Shhh, não contes tu também a ninguém. E o teu corpo volta a procurar o meu. Não contes, Amor. Porque eu voltei a falar com fadas. Voltei a sonhar com castelos. Porque a vida é um conto de fadas e eu tenho medo de quebrar o encantamento.

Escrevi-te

Tantas vezes inundada em lágrimas.
Tantas vezes aos gritos.
Tantas vezes em noites caladas.
E pedi.
Pedi tantas vezes que fosses meu.
Pedi tanto que fosses meu.
Só pedia que fosses meu.
Agora quero estar só.
Secar.
E amar este choro sem lágrimas

Composição

Tenho saudades da criança que fui. Já tenho 25 anos, faltam-me cinco anos para os 30 e já passaram vinte anos dos meus 5. Já passaram 20 anos desde que éramos seis pessoas em casa e seis pessoas no carro, seis cadeiras na mesa de jantar e seis pratos para as minhas mães lavarem. Já passaram duas décadas desde o meu primeiro dia de escola. Desde o dia em que chorei os rios do mundo quando tu e os meus pais me deixaram à porta da sala 1, e eu pensei que nunca mais vos ia voltar a ver. Desde o dia em que me fizeste lavar a boca com sabão azul e branco por ter dito uma palavra má. Desde os dias em que aprendi contigo a rezar, a agradecer e a acreditar em Deus. Já lá vai tanto, mas tanto tempo desde aqueles dias em que o meu irmão Bruno me ia buscar à escola e me fazia cócegas com o dedo mindinho no meu pequeno pulso, sempre que me dava a mão para atravessar a estrada. Já lá vão 20 anos desde os dias de composições sobre As minhas férias, O que quero ser quando for grande, ou Se eu fosse uma árvore. Já lá vai tanto tempo desde aqueles exercícios ortográficos com 0 erros ou desde o meu primeiro T.P.C.: fazer cinco linhas da letra i, sem esquecer de fazer a pintinha do i. Vinte anos desde aquele dia em que me sentei na minha cadeira de madeira nova, na minha secretária nova, toda orgulhosa porque já andava na escola. Já passou tanto tempo, desde aqueles tempos em que demorava tanto para adormecer. Desde os tempos em que não gostava de comer. Desde aqueles dias em que pensava que todas as pessoas do mundo eram boas.
Agora tenho 25 anos, e aconteceu tudo tão depressa. Quero que a vida pare, e volte atrás só mais uma vez. Tenho saudades da criança que fui. Quero voltar a andar de bicicleta no parque, aos Domingos de manhã com o meu Pai. Quero voltar a ir uma vez por semana com a minha mãe ao cinema nas Amoreiras. Quero que me voltes a mandar reescrever um texto de página e meia só para fazer a letra f mais bonita. Quero voltar a espreguiçar-me no teu colo, enquanto me chamas de Salsa Parrilha, Panqueca Dourada ou de Meu Filho. Quero voltar a acreditar na bondade de todas as pessoas. Quero voltar a ficar nervosa com o primeiro dia de aulas. Quero voltar a discutir com os meus irmãos e acabar a chorar, e que o Pedro brinque comigo aos teatros. Pedro, brinca comigo aos teatros! Quero acordar aos Sábados bem cedo para ver os bonecos e voltar a ficar indecisa: brinco com os Legos ou com os Playmobis?
Agora, tenho 25 anos, e fico nervosa com o primeiro dia de trabalho. Já tenho casa, e já pago contas. Os meus irmãos casaram, o meu afilhado Marcos nasceu, e eu tenho o meu Amor comigo. Agora, dou jantares em minha casa com as mesmas cinco pessoas da minha vida, mais 4. Ponho eu a mesa, são 9 pratos e um deles é bem pequenino. As vezes, ainda vejo desenhos animados aos Sábados de manhã, e ainda discuto com os meus irmãos e choro. Ainda dou a mão quando atravesso a rua e ainda tenho o pulso fininho. Ainda demoro a adormecer. Vendo bem, sou a mesma criança que fui. Já não tenho saudades de mim. A vida é tão bonita como dantes, só diferente.

Encosto a minha barriga à tua

E eis que a memória dos mortos desaparece.

Ainda vais a tempo

Ainda ficas parado a olhar para a neve a cair?
Ainda queres tocar em tudo?
Ainda gritas quando estás feliz?
Ainda te deixas ficar encharcado à chuva?
Ainda te sentes a corar quando te despem de pensamentos?
Ainda gritas numa casa vazia para ouvires o eco da tua voz?
Ainda acordas com vontade de brincar?
Ainda te ris sem conseguires parar?
Ainda fazes castelos na areia?
Ainda acreditas em contos de fadas?
Ainda te apaixonas como se fosse a primeira vez?
Ainda corres para chegares mais cedo?
Ainda queres saber tudo?
Ainda te faltam as palavras?
Espero que ainda digas que sim.
Admiro os que nunca se habituam ao mundo.

Silêncios que te falam

Para ti tenho palavras e silêncios.
Mais silêncios que palavras.
Palavras tímidas que se embrulham na minha língua.
Que se escondem nos meus dentes e não se deixam sair.
Para ti tenho palavras e silêncios.
Ortografias comprometidas. Sintaxes desconhecidas.
E tu sorris mesmo quando não ouves nada.
Lês-me entre silêncios.
Amas-me entre palavras.

De alma recolhida

O quarto estava frio. O quarto estava frio e ele lia, As armas e os barões assinalados que da Ocidental praia Lusitana por mares nunca dantes navegados passaram ainda além da Taprobana em perigos e guerras esforçados mais do que prometia a força humana. O quarto estava frio, ele lia, e as cortinas tocadas pelo vento encostavam-se às janelas. Ora cresciam onduladas. Ora diminuíam encolhidas. O Ricardo esticava o braço, a mão e as pontas dos dedos. O Ricardo recolhia o braço. O Ricardo recolhia os olhos. E levava novamente o olhar para, Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da Morte libertando.
Quando a luz já não o deixava ler, guardava o livro na cómoda e as mãos quietas debaixo do lençol. Fechava os olhos castanhos de tristezas tamanhas e inspirava fundo, desconfortavelmente bem fundo. Sentia dores nas pernas e comichão nos pés. Ignorando-as, recolhia as lágrimas que já lavavam os olhos, ajeitava a almofada e adormecia. As lágrimas juntavam-se e formavam rios, dos rios cresciam mares. E as sombras do vai-e-vem das cortinas continuavam.
De olhos fechados, o campo era largo, a noite escura e ele corria. Tinha 6 anos e brincava com os amigos aos invasores. Enquanto todos se defendiam ele atacava, porque a mãe sempre lhe disse que, A melhor defesa é um bom ataque. E ele sempre ouvia a mãe. Por isso, escondido atrás de pedras e buracos que faziam de trincheiras, soltava um grito de guerra e saltava vitorioso de espingarda na mão em forma de cajado, numa investida que lhe valeria depois uma cicatriz. A correr, saltou em falso e os pés e as mãos correram no ar, até caírem com o resto do corpo na vala. Arrancou os olhos do chão e depois as silvas das pernas e dos braços. Não chorou. A saliência estreita na perna direita passou a fazer parte dele. E para adormecer, enquanto uns contavam carneiros, ele passava a mão na cicatriz até adormecer.
A mãe entrou no quarto e disse, Bom dia. Ele não a ouviu. Abriu as cortinas do quarto e prendeu-as com as fitas. Deu-lhes dois laços. Queria que o Ricardo olhasse pela janela. Que ele ainda quisesse ver tudo, tocar em tudo. O Ricardo, que tinha os olhos nas pontas dos dedos. O Ricardo, que se entretinha a observar as pessoas e a calcular-lhes a vida pelos olhos, pelas roupas, pelo andar. Que corria em vez de andar. Que se ria em vez de sorrir. Prendeu as cortinas com as fitas e deu-lhes dois laços. Porque ela queria o Ricardo como ele era antes de ter tido o acidente. Antes de lhe terem amputado as duas pernas abaixo do joelho por causa de um acidente de mota. Antes de lhe terem cortado as pernas abaixo do joelho por causa de um homem que vinha em sentido contrário num carro roubado. Por causa de um homem que saiu ileso do acidente, sem uma cicatriz. Por causa de um homem que ainda pode andar e ainda conduz por estas estradas de Lisboa. O Ricardo ainda precisa de tempo para se habituar. Para se esquecer que teve pernas durante 21 anos ou para aprender a viver sem elas o resto da vida. Tens de reagir, disse-lhe a mãe ao prender as cortinas com as fitas. Ele não a ouviu. Não a ouve nem ouve ninguém. E com as dores do passado, deixa-se todas as noites adormecer. Mas temos de lhe dar tempo. Porque ele ainda sente dores nas pernas que não tem. Comichão nos pés que não tem. Ainda sente vontade de adormecer a passar a mão na cicatriz da perna que não tem.
Falta qualquer coisa neste texto para o fechar, mas não o consigo acabar. Mas a mim, só me faltam as palavras.

Quando te digo que te amo

Quero ouvi-lo também de ti.
Porque o amor não sobrevive sem ecos.

Casas

Há casas de botões
Há casas tipo casulos
Há casas tipo cápsulas
Há casas tipo campas
Há casas abandonadas
Há casas de campo
Há casas de cidade
Há casas abertas
Há casas com janelas
Há casas de bonecas
Há casas de miniatura
Há casas em papel
Há casas em playmobil
Há casas contigo
Há casas sem ti
Há casas comigo?

És cego

Mas só porque escondes os olhos.

Está a chorar

Tu perguntas e eu não sei,
Eu também não sei o que é a chuva.
O meu eu desencantado diz-nos,
É talvez o céu que chora.

A minha mãe costuma dizer

Laranja de manhã é ouro, à tarde prata e de noite mata.
Acho isso muito estranho. Nunca ouvi falar de alguém que se tenha tentado suicidar com dois copitos de sumo de laranja.

És um pequeno leão?

Filho de Mufasa e da rainha Sarabi?
Está bem, Simba. Hakuna matata para ti também. Neste momento estás muito instável, é um facto. Não sabes se hás de ser engenheiro, advogado ou o sucessor do Rei Leão. Já pensaste em não ser nada disso e ires viver para uma ilha deserta, pescares o teu peixe e agarrares os teus javalis. Já quiseste ser o lobisomem porque não te dás bem com o inverno. Já quiseste ser um assassino em série para depois escreveres um livro. Já quiseste ser ladrão e sonhaste que roubavas bancos internacionais aos fins de semana. Já experimentaste limpar vidros em arranha céus, já tentaste abastecer jactos em pleno ar, e já viajaste até ao pulmão do mundo só para veres ao vivo uma anaconda. Já te imaginaste a viver numa distante cidade do Oriente, mil e uma noites. Já sonhaste que encontravas um tesouro e roubavas quarenta ladrões. Já sonhaste que combatias incêndios florestais na Sibéria, que saías à noite pela cidade a cortar cabeças, ou que passavas os dias a demolir edifícios com centenas de euros em dinamite a teus pés. Já sentiste que voavas e tens medo de enlouquecer. Em pequeno fazias experiências pirómanas com formigas e enchias folhas e folhas com textos simulados quando ainda nem sabias escrever. Numa mesma semana quiseste ser actor, fotojornalista, e piloto de testes de avião. Já quiseste conduzir veículos pesados em pontes frágeis de madeira. Já quiseste ser o homem aranha. Já quiseste ser lenhador, correspondente de guerra, e bombeiro pára-quedista. Está bem. Neste momento ainda te sentes instável. Mas já sabes que queres ser copywriter e estás ansioso pela batalha final. Ou te cortam a cabeça, ou te tornas imortal.

E sob um céu vago

Eis o momento.
A morte virá tarde
Porque tudo acabou cedo.

O funeral foi meu, amor

Já se passaram tantos anos desde a última vez que te vi. Já passou tanto tempo desde a nossa última viagem de comboio. Foste tu que morreste mas o funeral foi meu. E desde esse dia, nunca mais consegui chorar. Mas quem é que chora no seu próprio funeral?

Mein Schatz

O que mais me dói na tua ausência é não ver a tua escova de dentes junto da minha.

A saudade ocupa a noite toda

Mas em cada ano com a Primavera as flores aparecem, e o inverno um dia cessa.

Eu tenho medo

De um dia deixar de ter medo.

Tenho uma boca triste

Que só se abre para se calar.

Este poema é o meu medo

As minhas palavras não ditas
Estão perdidas dentro de mim.

Não me tragam flores, que eu sofro

No dia em que morreste
Morri eu também a olhar para ti
Meti-me para dentro de mim
E fechei a janela
Os meus lábios sabem-me a antigo.
Nem na morte espero dormir
Vou andar pelo Mundo
Qual cadáver acordado
Porque me culpo
Os meus lábios sabem-me a antigo.
Acendo um cigarro
Se bem que não fumo
E a minha boca velada
Não dirá nada
Os meus lábios sabiam-me a antigo.
Sou feliz agora morta
Longe dessa prisão fechada
Que era o Mundo sem ti.

Ao Vinho


Dizem que nasceste por acaso
Talvez por uma mão-cheia
De uvas esmagadas e esquecidas
Dizem que és da cor da terra,
Da rosa e do sangue
Que tens a cor da noite e também a do dia
Dizem que moves os homens
Que apressas a Primavera
E que foste tu quem inventou a alegria
Encontra-te comigo hoje
E à luz de uma garrafa
Vamos dar a palavra aos pensamentos
E na próxima noite é a lua que nos procura.

Eu amo-te tanto

Uma vida toda contigo não me é suficiente.

Hoje quase sorri

Os últimos meses têm sido bons, tenho quase sorrido. Mas incomodam-me esses quase. O que quase ganhou ainda pode perder porque ainda joga. O que quase partiu mas que continua no mesmo lugar. Se calhar sou cobarde. Podia decidir de uma vez por todas entre a alegria ou a tristeza. Mas esta vida a meio gás, o tempo que não passa nem depressa nem devagar, tem-me prisioneira. Gosto de pensar que não pertenço a lado nenhum. Que não tenho raízes. Que não tenho família nem amigos de infância que sabem qual era o meu jogo preferido, ou que se lembram das fitas que fazia quando era pequena. Gosto de pensar que não tenho passado. Nasci aqui em Lisboa e nasci com 30 anos. Aparentemente não sou casada porque vivo num quarto arrendado bem perto do café A Brasileira. Aparentemente também não tenho amigos porque sou muito solitária. Tenho as minhas rotinas e elas são cheias de nada ou de ninguém. Não vou tomar café com amigos, não tenho encontros com rapazes. Ninguém me conhece e eu não conheço o meu passado. Gosto de pensar que posso pegar na mochila e colocar lá dentro a única coisa que me interessa guardar. Aquela fotografia. Daquele momento que não recordo porque nasci com 30 anos. Daquele momento que não vivi porque apaguei de mim todas as memórias. Porque não me lembro. Não me lembro do que fiz, do que fizeste, do que eu fiz porque fizeste. Ou porque fiz o que tinha a fazer. Não me lembro, ou não me recordo, ou esforço-me para não me lembrar. Não te deixes errar outra vez, digo-me a mim própria. Ainda vou a tempo. Ainda vou a tempo porque ainda me lembro da última vez que sorri.

Luanda

Homens incompletos
Com uma perna das calças
Enrolada de qualquer jeito
E sem serventia
Coxas que terminam de repente
E sapatos encaixados
Em pernas postiças
Cidade de cicatrizes e cruzes
Antes eras florida
Agora tens mortos de guerra
Plantados nos teus jardins
Os que ainda sobram estão sós
Exaustos e famintos
Arrastam-se pelas ruas imundas
E afastam as moscas que voltam
Uma história com final infeliz
É a nossa
Abriga-nos debaixo desta terra
Vermelha e ainda amada
Tem pena de nós
Tira-nos de vez o funje de cada dia
E deixa-nos sangrar até à morte
De Luanda já não me lembro
Mas deve ter sido bonita.

Abelha

Uma abelha que procura a flor
Procura ter mais vida que a vida
E o seu zumbido é mais canto que outro canto qualquer.

O Amor é grande

Espécie de raiz profunda
feita de sol e de sombra
sai de mim, sai de mim.
Deixa-me aqui deitada em terra fria
para que eu possa seguir o vento quente
que passou por mim, uma vez.
E eu vou, juro que vou,
ter com o Amor que é bem maior do que os homens.
Vou, juro que vou,
porque eu quero brilhar no escuro
e sentir o mundo com as mãos
Sentir castelos na língua
E respirar odes em noites de fado.
Porque eu sonho com o etéreo
deitada em mantos de estrelas
Porque eu vivo do sonho e sonho com o eterno
Eternamente.
Porque eu vivo pelo amor, e sem ele,
Deito-me todas as noites num trono frio
De um reino vazio.

Apanha-me o dossier

Há uns meses largos, quando eu ainda morava em Viena de Áustria, resolvi inscrever-me num curso de alemão. Disseram-me que o melhor era fazer na universidade de Viena e eu fui lá inscrever-me. Deram-me a morada da sala de aula e na semana seguinte estava lá. Contente, porque iria conhecer pessoas novas e quem sabe fazer amigos. Esperava encontrar até cacifos. Algo que estava no meu imaginário antes de ter entrado para a Católica e que se tornou uma grande decepção. Na Católica não havia cacifos e também não havia rapazes giros que me pudessem apanhar o dossier quando eu propositadamente o deixasse cair. Então tive boas notas. Enfim, disseram-me que as aulas seriam dadas no Campus da universidade. Pouco mais de 15 dias se passaram e eu queixei-me a uma amiga de que afinal o curso nao estava a ser dado na universidade como me tinham dito, mas sim numa escola qualquer, porque o pessoal era todo muito novo. E aí ela relembrou-me que as pessoas que vão à universidade são realmente muito novas. E aí eu puxei pela memória, e sim, entrei com 17 anos na universidade. E então lembrei-me que já passaram 10. Tudo começou a fazer sentido, e não são eles que são muito novos. Escusado será dizer que não fiz muitos amigos. A maioria só queria falar de rapazes e pintar as unhas, ou ouvir Rammstein e fumar ganzas.

Os meus dias contigo

Eram como os dias de um relógio de parede.

Amar

É esquecer continuamente que se é um só.

Quando me dás a mão

Guardas na minha todos os sonhos que nem eu sabia que sonhava.

Às vezes lembro-me de ti a sorrir.

Só de me lembrar disso vale a pena ter nascido.

As minhas bonecas do orfanato

Tenho tido dores de cabeça toda a minha vida, ou melhor, desde os 7 anos. Desde aquele terrível acidente em que o comboio foi contra o nosso buggy e eu perdi a minha mãe. Foi num dia frio de Novembro. Eu tinha duas irmãs mais pequenas e vivíamos as quatro num apartamento pequeno do centro de Viena. O meu pai suicidou-se com veneno para matar ratos, durante o nosso chá das cinco. Eu adorava o chá das cinco. Eu era a dona da casa e sentava-me confortavelmente na poltrona. Perto de mim, o carrinho de chá. O meu pai ensinou-me a baixar o mindinho enquanto levava a chávena aos meus lábios repenicados. E eu pensava, não posso sorver nem ter o mindinho levantado. Não posso sorver nem ter o mindinho levantado. No carrinho tínhamos tudo o que precisávamos, o bule com chá quente, verde – o preferido do meu pai – um jarro com água aquecida, creme de leite fino, o açucareiro, um preto de rodelas de limão com um garfinho repousado, duas xícaras, colheres e guardanapos. No dia do último chá, o meu pai tinha-me trazido um pequeno jarro com rosas para dar um toque elegante. O chá das cinco acabou às cinco depois das cinco, quando o meu pai me disse que se estava a sentir mal. Tinha náuseas e passou a maior parte do nosso chá na casa de banho. Até que deve ter ligado para o hospital porque vieram buscá-lo e levaram-no para as emergências. Mas foi tarde demais. Os médicos suspeitaram de envenenamento por causa da rapidez com que os sintomas se manifestaram. Foi assim que eu perdi o meu pai, dois anos antes de perder a minha mãe. O próximo chá das cinco aconteceu com as minhas bonecas no orfanato, para onde eu e as minhas irmãs fomos levadas. Realmente é uma ironia o nome, porque não havia muita luz no orfanato. Estava sobreocupado e eu dividia a cama com uma outra rapariga da minha idade. Ninguém tinha brinquedos, e só havia um cobertor por cama. Eu e a Luísa cortámos com uma tesoura o nosso cobertor porque frequentemente uma de nós dormia descoberta e acordava com frio a meio da noite. Não éramos nós que éramos gordas. Era o cobertor que era insuficiente. Sempre me disseram que trariam as minhas bonecas de casa para mim, mas eu nunca as recebi. Estivemos no orfanato 4 anos. Nunca fomos adoptadas, talvez porque éramos muito velhas para isso, e os pais que apareciam lá queriam todos bebés. Os bebés choram, não dormem de noite, ficam mais vezes doentes, obrigam as mães a mudarem-lhes as fraldas constantemente, são totalmente dependentes deles e só dão trabalhos. Nunca percebi essa obsessão em adoptar bebés. Eu já tinha idade suficiente para cuidar de mim, lavava muito bem os dentes e ajudava as minhas irmãzinhas a tomarem banho, a vestirem-se, a comer, e nunca criava problemas com as outras crianças. Eu era uma criança perfeita, porque é que não me adoptavam? Só queria que aquelas criaturas indefesas desaparecessem. Na manhã do dia de Natal de 1990 acordei com os gritos histéricos das outras crianças. Em duas noites desapareceram 2 bebés. Eu tinha um esconderijo. Construí sozinha uma casa na árvore, dentro do campo do orfanato, claro. E era lá que eu tomava o chá das cinco com as novas bonecas que o orfanato me tinham dado. Um psicólogo todos os meses visitava o orfanato da Luz e nós éramos obrigadas a falar com ele. Eu e as minhas irmãs, porque tínhamos perdido os dois pais de maneira traumática. Usavam frequentemente essa palavra, que só mais tarde percebi o que significava. Abri um livro da biblioteca do orfanato que continha 20 livros, um dicionário e li que algo traumático estava relacionado a um trauma, e um trauma era um ferimento, e também um choque emocional violento que modifica a personalidade de um sujeito podendo desencadear problemas psíquicos. Fiquei na mesma, tinha 8 anos e não achava que estava diferente de antes. Só mais sozinha. No dia em que a minha mãe morreu esmagada pelo carro esmagado pelo comboio, ela tinha me ido buscar à escola mais cedo porque a reitoria estava farta dos meus esconderijos. Nunca perceberam a minha brincadeira. Eu escondia-me sempre no mesmo lugar, dentro de um armário da sala dos professores. Eles diziam que eu era desordeira e problemática. E perguntaram à minha mãe se eu tinha passado por alguma situação traumática. Foi a primeira vez que ouvi essa palavra mas dela só retive o final. Ática. A minha mãe contou-lhes do suicídio do meu pai e aparentemente essa foi a situação ática escolhida para justificar os meus esconderijos. Mas a minha mãe não me censurava. Ela percebia. Não me dizia uma palavra sobre isso. Tenho saudades dela. E das minhas bonecas, que acabei por ter de enterrar, porque estavam a apodrecer.