Mr.
I get close to you and there’s no perfume alike
Can’t wait to feel you also after an exercise bike
You brainwashed me very much like the guy
Who was in charge of the entire Third Reich
Your lips approach mine and I am kind of hypnotized
At least that’s what I feel like inside my mind
You go away and it is like a hunger strike
Should I send you a love letter?
Or would you rather a night ladder?
Come on leave here your sweater
You’re most welcomed in my shelter
So close your eyes and take a leek
Let’s not play hide and seek because for you
I would twist my ankle every week
And no it is not like that
I am not a freak
But I look at you and my eyes go oblique
Call me romantic or just antique
This I cannot change and it is not a technique
You carry me up and down the mountain peak
And say my handicap darling then you wink
And I think about you and me and Mozambique
Wait let me explain I tell you again
I am not a freak it’s only that my parents taught me very well
Not to talk about sex and not to express
So I think I will just name all the countries instead
Or I think I better name all the countries in bed
Os bons Pais
O meu Natal
Schnell
Solidão como Companhia
Prazo de Validade
Love-hate for Austria
Na Áustria, os bebés não são irrequietos. Não se conseguem mexer com tanta roupa. Também não choram, sabem o quão desconfortável é ter a cair dos olhos estalactites.
Na Áustria, as pessoas levam multa se não atravessarem na passadeira e andam mais depressa porque devagar correm o risco de congelar. Também não sorriem na rua para não resfriarem as gengivas. Em casa, se se riem, o riso é prontamente auto-interrompido e justificam-se aos familiares ou amigos. Nos supermercados, as caixas parecem linhas de montagem de uma fábrica. Se demorarmos muito a guardar as compras, ficamos sem os dedos.
Na Áustria, os deficientes podem andar sozinhos em todo o lado porque há acessos fantásticos para eles sejam totalmente independentes. Se não fosse assim não sairiam de casa porque não teriam quem os ajudasse. Todas as passadeiras de peões foram pensadas também para os cegos. Existe um som que orienta o cego para atravessar a passadeira. Mas o som está lá quer passem carros quer a estrada esteja vazia. Talvez seja por isso que nunca vi um cego na rua. Já foram mortos pelo sistema.
Na Áustria praticamente não há desemprego nem sem-abrigo. Os que dormem nos bancos de jardim morrem de frio. E também não há pedintes por aqui. Como pedir é crime, são imediatamente levados pela polícia. Talvez seja por isso que ninguém pede desculpa ou com licença. Se algum estrangeiro está a impedir o caminho, o austríaco tenta ultrapassar o obstáculo em silêncio ou espera que o estrangeiro acabe de atar o sapato. Não falam qualquer palavra mas depois emitem um som de desagrado quando o caminho está finalmente livre. Na Áustria, antes de qualquer pergunta a um desconhecido eles avisam que vão faze-la. Dizem, Uma pergunta. E continuam. Ainda estou um dia para responder: Uma resposta. Ou se a pergunta me surpreender, digo, Uma exclamação.
Mas também, na Áustria não é de bom tom perguntar que gritos foram aqueles ou porque é que a filha do fulano nunca mais foi vista. Talvez seja por isso que na Áustria seja possível guardar-se filhos na cave durante anos sem que ninguém note.
Para os austríacos, um dia divertido é passá-lo em filas para fazer snowboard e depois em filas para comprar salsichas. Para eles, um com 2 graus positivos e 5 minutos de sol que não aquece ao meio-dia é um dia bonito. Se não fosse assim, não havia dias bonitos na Áustria. Mas o que falta em calor, existe em organização. Na Áustria todas as regras são cumpridas e quando um estrangeiro não as completa até o ser-se atropelado por uma bicicleta se torna possível. Quem quiser viver a experiência, basta que em vez de andar nas faixas reservadas para os peões, ande nas faixas para bicicleta. Por norma ouve-se uma campainha que avisa a aproximação do ciclista e depois, o embate. Eles não param porque estão dentro da lei.
Na Áustria, a qualidade de vida é sem dúvida superior e está a léguas de países como o Brasil. Até os ladrões são diferentes. Os ladrões brasileiros roubam porque têm fome, os austríacos roubam de barriga cheia. Ladrões? Mas o que estou para aqui a dizer! Não há roubos na Áustria, há objectos perdidos.
E já vos falei da mania deles de apresentarem a pergunta antes de a fazerem. Eles dizem, Eine Frage, e blá blá blá. Pois, então agora falo-vos da mania de dizerem Achso! e que não, não são eles a espirrar. Significa, Ahhhhh, já percebo. Ora, eles dizem isso muitas vezes porque é complicado para cada um dos austríacos perceber o que o outro está a dizer. Isto porque para além de ninguém saber ao certo falar alemão, eles colocam os verbos no fim da frase. E as frases podem ser do tamanho de umas dez linhas. Quando o austríaco diz o verbo de acção que revela finalmente o que é ele foi fazer, o outro austríaco não tem outra resposta senão um Achso! (santinho) Pois, agora percebo, seria o que vocês portugueses diriam no fim da minha conversa toda se eu vos dissesse, Eu à cave da nossa casa com o meu namorado uns quantos tomates e uma Coca-Cola ontem ao fim do dia já escuro muito depressa porque amigos em casa tínhamos buscar fomos. O Achso viria naturalmente, e até com um certo alívio. Ninguém prendeu ninguém na cave, a cave também não foi o lugar onde a magia acontece, e finalmente entenderam que só lá fomos buscar uns inocentes tomates e uma Coca-Cola. Ufa. Mas há um outro perigo. Quando finalmente eles sabem o que é que se fez na cave, há grandes probabilidades de já não se lembrarem quem é que lá foi. Não é por acaso que o psiquiatra Alois Alzheimer era alemão. E a minha frase é uma brincadeira de bebé, comparada com as deles.
Mas há outras coisas estranhas, por exemplo, aqui, a rapariga não é do sexo feminino ou sequer masculino. Simplesmente, não tem sexo. É neutra (das Mädchen). Mas a cenoura (die Karotte) tem já todo o direito a ser do sexo feminino. Penso que isso seja porque a cenoura é rica em betacaroteno, que é importante para a pele e para as mucosas. Outra coisa estranha é a ligação entre as mulheres e as raparigas sem sexo com a bicicleta. Para começar, todas têm uma bicicleta. Uma mulher aqui na Áustria sem bicicleta não é uma mulher. Quando eu não tinha bicicleta elas nem respondiam aos meus bons dias. E não era por serem xenófobas. E por bicicleta entenda-se a bicicleta com cadeado, cestinha, capa de selim, corrente, bomba de ar, capacete, cotoveleira, joelheira, e outras nhanhanheiras. Mas até aí tudo bem, o problema pelo menos para mim passa por andarem de bicicleta com mini-mini-mini-mini-saias, com a perna para cima, perna para baixo, perna para cima, para baixo, calcinha com renda, perna para cima, perna para baixo, cuecas da avó, para cima, para baixo, cima, baixo. Conto umas cinco calcinhas por dia, isto porque a maior parte delas usa. Mas há coisas piores. O Danúbio, o Danúbio Azul que deu o nome à valsa do Strauss, e inspirou tantos outros poetas, fá-los-ia regurgitar os últimos jantares em vida. Nos seus bons tempos, ao longo dos 110 km, da nascente ao poente, o rio recebia mais de vinte pequenos mas cheios afluentes. Hoje são fios de água e condutores de esgoto e outros detritos. Até os pobres batráquios desapareceram. Quando o Strauss passeava pelas margens do Danúbio em câmara lenta, porque na altura era tudo mais devagar, era comum passar-se por famílias inteiras em piqueniques e ver-se os putos a aprender a nadar nas águas então cristalinas. Agora ainda se vêem muitas pessoas, mas a apanhar sol na relva e uns poucos malucos como eu dentro do rio lamacento. Mas ou vou lá para dentro envenenar-me ou a opção é esticar-me na relva a apanhar um sol enevoado ao lado de pessoas que não conhecem o hábito de usar um biquini ou calções de banho. Meus amigos, bitte, Enfiem-me num avião de volta para Lisboa, ou metam-me numa cave!
*Nota: Este texto é tipo uma caricatura. Não há qualquer má intenção e há muito exagero.
O nosso amor não morre
As nossas mãos estão frias
Como se eu nos tivesse tirado a vida
Mas o amor nunca morre
Só se esconde aqui no centro de mim
Batalho como alguém que pensa
Conhecer a alma das coisas
E como alguém que luta
Para recordar esse conhecimento
Mas falta sempre o que não recordo
Ganha-se a batalha e no chão
Soldados nossos mortos
Em morte paulatina
Perco cem mil homens num só
Exponho-me à carnificina por causa de ti
És o meu homem abstracto
Um ser inclinado que sorri
Do céu em queda livre.
Os teus olhos verdes
Sinto-lhe o gosto dos ovos postos na minha língua
Deixas as varejas no meu tapete vermelho
e eu contenho aos solavancos os vómitos dentro de mim.
Tu olhas para mim com os teus olhos verdes
Enquanto esfregas as tuas mãos uma na outra, uma na outra, uma na outra.
O meu nome é Sofia e moro com os meus pais na Pontinha
Mas hoje devo estar constipada. Deve ser isso, porque não sinto nenhum cheiro familiar. Estou de férias em algum lugar. Sim, porque hoje não acordei no meu quarto cor-de-rosa. Nem acordei com a minha mãe a subir de rompão os estores, porque está um dia lindo lá fora, nem com as músicas dos Platters, ou com canções italianas. Hoje a minha avó também não me veio desafiar para um crapô. E o meu pai não chegou a casa, nem pousou a pasta de médico, parecida com a pasta do Dr. Freud, no armário da entrada. Os miúdos não discutiram sobre quem levava o carro hoje à noite. O Pedro não atirou as culpas para cima do Bruno e o Bruno não se atirou para o sofá a ver televisão. Não está ninguém em casa, ou será que eu é que me evadi de mim? Não. Devo estar de férias.
Estranho. Quem é este homem que agora todas as noites dorme e acorda comigo? Que parece que sabe quem eu sou e do que é que gosto. Que sabe que tenho medo de morrer a dormir, e que tenho medo de enlouquecer. Mas quem é este homem sentado ao meu lado com um anel igual ao meu, e que sempre se adianta e pede uma Coca-Cola por mim porque sabe que eu não bebo outra coisa? É giro, não vou dizer que não, e de vez em quando dá-me beijos na boca, sabem bem, não vou dizer que não, mas não deixa de me ser um estranho. Um estranho que me conhece. Será que me é alguma coisa? Um parente afastado? Um primo afastado apaixonado? Não. Não sei quem é. E não é da minha família. Nós somos cinco lá em casa. Não há o que enganar nas contas. Sempre fomos cinco: A minha mãe, o meu pai, eu e os miúdos. A minha avó mora no quarteirão a seguir, tenho um tio-avô em Linda-a-Velha e uma tia-avó na Rua dos Soeiros, e é isso, não nos damos com mais ninguém. E lá em casa somos 5.
Estranho. Dizem-me agora que As minhas águas rebentaram. Mas eu não estou a chorar nem estou com a menstruação. Eu acho que sofro é de incontinência. Sim, sinto água a correr pelas pernas abaixo, qual fonte contrariada. Depressa, é o primeiro filho, acabei de ouvir. Mas filho de quem? O meu nome é Sofia e eu moro com os meus pais na Pontinha. Vestiram-me uma roupa azul, e gritam, repetitivos, Puxe, puxe. Vá lá, só mais uma vez. E eu, obediente e de pernas abertas, vejo um bebé a sair de mim, a chorar desalmadamente. Quem é ele? Parece um dos meus Nenucos mas eu sei que não é meu. Os meus Nenucos não choram, não funcionam a pilhas.
Ressaca de ti
Gosto dele, bebe-me mais um pouco.
Aquele teu andar que encurta as distâncias e te faz misturar o teu lugar com o meu.
Gosto dele, bebe-me mais um pouco.
Aquele teu braço que faz a tua mão aproximar-se dele e aproxima a tua boca de mim.
Gosto dele, bebe-me mais um pouco nesse arriscado copo.
Bendita assombrosa lucidez do álcool.
Que te faz querer-me como eu te quero em água.
Isabel Amaral
Tinha acabado de chegar de Faro, onde morei dos dois aos quatro anos, e fixámo-nos em Lisboa. Eu passei a morar no 3.º C, na casa da minha avó que sempre tratei por mãe. Ela morava no 1º C e era filha da porteira. Chamava-se Isabel Amaral e tinha primos com piolhos. Eu não gostava do Benfica porque o pai da Isa não a deixava brincar comigo, dizia a tudo que não quando o Benfica perdia. E o Benfica perdia muitas vezes. Eu não gostava dos primos dela que tinham piolhos. Volta e meia ela era levada pelos pais para a terra que se chamava Viseu para ir ao aniversário de um dos 15 primos que tinham piolhos.
Eu tive piolhos. Agora sei que os piolhos são insectos sem asas, de cor escura, pequenos, que se alimentam exclusivamente de sangue humano. Agora sei que os ovos dos piolhos são endurecidos e de cor branca tipo pérola e são chamados de lêndeas. São depositadas nos fios de cabelo, próximos do couro cabeludo, e deles nascem as ninfas que quando adultas depositam cerca de 80 ovos antes de morrer. Quando eu tinha 4 anos, as lêndeas não eram outra coisa senão os filhotes irrequietos dos piolhos, que gostavam muito de viajar, saltando facilmente de cabeça em cabeça. Nunca me importei de ter piolhos. Aliás, até gostava da extra atenção da minha mãe quando me revistava o couro cabeludo. Às vezes, e isto nunca lhe confessei, fingia ter comichão aqui e ali.
A Isa estava sempre presente. Lembro-me de brincar com ela e com os meus irmãos com legos e carrinhos. De nos construírem uma casa feita de lençóis na sala, presos por molas. Tendas anexadas a tendas. De nos sentarmos quietas e ansiosas pelo espectáculo de fantoches no beliche dos meus irmãos. De chorar desalmadamente quando o meu irmão Pedro incorporando o papel de cowboy maldito queimava os meus índios, depois de atados a paus e rodados sobre uma fogueira, tal espeto de javali grelhado sobre brasas. E da Isa deliciar-se a ver-nos a brincar, porque dizia que preferia ver do que estragar alguma coisa. Lembro-me do meu irmão Bruno me torturar com cócegas quando me ia buscar à escola primária n.º 2 da Pontinha. Lembro-me da Isa ter contado à minha avó que o Marcos me tinha dado um beijinho na boca, e de eu ter sido obrigada a lavar os dentes, os lábios e a língua com sabão azul e branco, quando o beijinho na boca fora na verdade um leve e tímido encostar de lábios muito juntos e esticados. Lembro-me de lhe contar estórias inventadas à pressão só para a distrair, porque ela estava triste. Lembro-me dela ser canhota e eu achar muita piada. E de com as nossas mãos termos feito um carro viajar até ao futuro, passando com o carrinho perto da rota de fios de algodão ensopados em álcool, e depois incendiados pelo meu irmão quase pirómano. Lembro-me de querer ser bombeira. E ela polícia. Lembro-me de partilhar todos os meus brinquedos com ela. De andar de bicicleta à volta do quarteirão, por turnos. Primeiro ela. Depois eu. Depois ela. Depois eu. E o meu Pai e os meus irmãos correrem atrás para que se caíssemos fossemos agarradas. Lembro-me dela a tapar a boca com as duas mãos, de ficar vermelha e parecer que podia explodir a qualquer segundo, e de me implorar que eu parasse de contar piadas porque ela não conseguia respirar se se risse assim tanto. Lembro-me de lavarmos as duas as roupinhas das nossas bonecas no tanque. Em dois tanques pequenos, feitos ao nosso tamanho, e que a minha mãe comprou para nós. Lembro-me de nos esticarmos para pendurar as roupas nos varais do 1.º C. Lembro-me de ficarmos as duas na varanda do 3.º C a olhar para o prédio alto e cheio de janelas iluminadas que ficava depois do descampado, onde eu costumava colher flores com a minha avó. E eu dizia-lhe frequentemente que eu ainda havia de morar naquele prédio de reis e rainhas, quando fosse crescida. E que a levava comigo. Lembro-me de lhe dizer, agora eras a policia e eu era o ladrão e tu tentavas prender-me porque eu tinha roubado as maçãs da mercearia do senhor Mário e da senhora Odete. Ela sempre quis ser polícia. Eu sempre quis ser um ladrão.
Lembro-me de tanta coisa. De a ter convencido a brincar às cabeleireiras na sala da casa da minha avó que sempre tratei por mãe. Ela, com a voz fina e instável de 5 anos, perguntava-me pela terceira vez, ó Sofia, não vais cortar a sério, pois não? E eu dizia-lhe, fica descansada que a tesoura é de brincar. Mas vira-te para a frente. Vira-te para a frente senão não brinco mais contigo. E ela virava-se para a frente. E eu cortar-lhe-ia o cabelo pelas orelhas. E ela agradecer-me-ia, porque assim ficava mais bonita. Sempre tive a certeza de que se eu lhe dissesse, faz isto, faz aquilo, senão nunca mais sou tua amiga, ela fazia. Uma amizade assim nunca mais tive.
Agora moro no 1.º B desse prédio que não tem reis nem rainhas, a senhora Odete morreu com um cancro, tu moras em Viseu e trabalhas numa fábrica de material de automóvel. Mas eu, quando vou visitar a minha avó, continuo a olhar da varanda do 3.º C para baixo, e procuro no varal as roupas das nossas bonecas penduradas. E por vezes, quando volto para minha casa, engano-me e vou bater ao 1.º C. Vamos andar de bicicleta. Vamos vestir e pentear as bonecas. Vamos brincar com plasticinas. Vamos cantar ao microfone. Vem brincar comigo, Isa, senão nunca mais sou tua amiga.
Tu e eu
Só porque sim.
E enches a minha vida
Só porque respiras.
Mas que grande amor se explica?
O barco pára, largamos os remos
E damos as mãos um ao outro.
Fecho os olhos e como um retrato
O teu rosto aparece-me na alma.
Dizes que me amas,
Eu não digo nada.
Mas na tua voz ouve-se tão bem a minha.
Os remos caem na água
O barco faz o que a água quer.
Embalada nesta ondulação ténue
Eu descanso em ti.
E este momento contigo
Sem pressa nenhuma
É a minha maior felicidade.
Os remos já não estão perto,
O barco segue para não sei onde
E eu sei que não quero mais ninguém
Comigo nesta viagem.
Dormente
Que me percorre a alma acariciando o corpo.
A ti só pedirei que me concedas o que nunca te vou exigir.
Porque tu és vadio...
Nem quieta nem inquieta espero pelo que o fado me trouxer
mas se me ergueres, erguerás ouro
porque sinto prazer, sinto dor
e porque para ti me dou como se nunca tivesse sofrido.
Mas tal como é, gozemos o momento.
Aguardando o amor como alguém que o conhece
E lhe reconhece os defeitos, os feitios.
E de longe vejo o cimo da montanha branca
e o sol que suave beija o gelo fazendo-o chorar de ventura.
Eu quero chorar com os teus beijos, Sol.
Quero que me descongeles, porque há muito tempo que sou geada.
Quero que me beijes os lábios solitários
Quero que me ocupes o corpo descampado
nas noites que caem doces sobre nós.
E quando o mar engolir a areia e arrastar com ele todos os castelos
Eu quero que o nosso subsista.
Porque tu és vício...
Dormente, a dormir sorrio.
Porque me pesas no corpo e me beijas a alma.
Gato vadio.
Mosca da azeitona
Comecei a ficar impressionada contigo quando me apercebi que repetias os mesmos movimentos, metodicamente, sem que no entanto observasses nada. A mulher rechonchuda, os namorados, eu e os nossos reflexos, eram simples pontos de foco.
E tu, sem fisionomia, seguias invariavelmente a mesma rota sem nunca chegares a lado nenhum. Eu desviava o olhar um segundo exacto antes de me transformares num dos teus pontos de foco. Fazia-me distraída, para depois reconciliar o meu olhar em ti. Na tua camisa com a gola bem engomada que me falava do teu perfeccionismo. No teu cabelo militaristamente penteado que me apresentava o teu pai, que te deixava de falar quando o teu cabelo castanho – de encantos tamanhos – crescia uns infelizes centímetros. Barba, penso até que nunca tiveste. E tu continuavas com o teu olhar de pestanas longas e escuras perdido em movimentos hexagonais, sem nunca me encontrares a olhar para ti quando passavas os olhos no teu ponto de foco preferido. Era em mim que te demoravas mais.
Entraste no curso de medicina, porque o teu pai assim pensou que querias, ou não pensou que não quisesses. Quando tinhas quase seis anos, a meio de um jantar de família o teu pai disse-te, António, levante-se e pule até eu lhe dizer que pare. E tu pulaste, até que ele se enfadasse com o barulho dos teus pés no soalho, até que ele se incomodasse com o barulho dos teus pés no soalho.
Dei por mim a olhar para ti fixamente. Lembravas-me uma mosquinha das frutas, engrenada na sua rota sem sentido. Paravas o teu olhar na mulher rechonchuda que sentada a teu lado se agarrava a uma revista cor-de-rosa, entretendo-se com as notícias de uma tia que engordou, ou de um casal que se separou. Tu, voltavas a desviar o olhar, voltavas a apanhar o casal de adolescentes que sem pudor tentavam chegar com a língua ao céu-da-boca do outro.
Já deves ter reparado, António – quieto como és – nas tuas moscas volantes. Nas sombras que aparecem sozinhas no teu campo visual, quando ficas parado a olhar para o vazio. Tu, António – quieto como és – já deves ter notado as moscas que às vezes são pontos, outras vezes linhas, ou fragmentos de teias de aranhas, que flutuam morosas em frente dos teus olhos. Dos meus olhos. E depois piscamos e elas sobem. Desaparecem. Foi o que me aconteceu contigo. Eu distraí-me e perdi-te de mim. Levanto-me da minha cadeira, na carruagem, e sou novamente uma menina com medo de fantasmas num corredor enorme e escuro, que parece nunca mais acabar. Pisquei os olhos e desapareceste. Até voltares a aparecer no dia seguinte no jornal. Tinhas te atirado para a linha do comboio. Chamavas-te mesmo António, e tinhas quase 20 anos. Quase vinte anos e eu não fiz nada. Quase vinte anos e eu limitei-me a observar os teus movimentos hexagonais. Quase vinte anos e eu fui apenas um ponto de foco para ti. Pisquei os olhos e tu desapareceste. E eu serei para sempre a menina com medo do teu fantasma num corredor que nunca mais acaba.
Lisboa branca
Felizes para sempre
Em pós mágicos
Em abóboras voadoras.
Sou uma criança que acredita em fadas
Em sapatinhos de cristal
Em príncipes encantados.
Sou uma criança que fala com fadas
Sonha com bailes e não sabe que a vida não é um conto qualquer.
Aromia Moschata, da família das Longhorn Beetles
Estive uns quantos minutos a sacudir-me agressivamente, e entrei no carocha. Fui para a praia do Castelo, cujo nome me faz sentir estupidamente segura. Trouxe o Smith junto ao peito, e levei a toalha vermelha que trago sempre no carro, qual pneu sobresselente. Na praia, deitei-me, levantei-me e fui novamente a correr para a água. Estive duas horas seguidas em pé na água, a tremelicar, e a sacudir-me dos insectos que pareciam confundir-me com mel. Ainda levei um ou outro piropo primário dos banhistas, cujos camiões estavam mal estacionados perto da praia, e que me disseram por duas vezes, pecando na originalidade, Sabe, é que a menina deve ser muito doce. Contrariamente ao que se espera de uma praia com o nome de Praia do Castelo, não vi príncipes encantados, só sapos com verrugas e novamente uns quantos cachalotes com fios de ouro pendurados ao pescoço e tatuagens a louvar as mães facilmente confundíveis com nódoas negras. Não vi príncipes, vi apenas um rapaz a ler a Bola, outro a ver a Maxmen, um homem a rodar o piercing do mamilo. Do dele, vá lá. Vi uma cachalote femea e velha a fazer topless de fio dental harmoniosamente bem escondido entre as peles. Um rapaz de uns 20 e poucos anos a ser barrado com creme protector nas costas, nos braços, na cara e no peito, pelo pai. Vi de tudo, só não vi um único príncipe. O Smith também não ficou muito contente com o dia de praia na Caparica, porque eu tinha lhe dito que estaria horas deitada, com o meu biquíni vermelho a comer com ele os bolinhos que acabei por não levar à minha avó, lendo-o de um lado ao outro, e o coitado do Smith acabou por passar o tempo todo na areia, sozinho e varrido pelo vento, pela areia e pelos insectos, entregue à bicharada.
As tuas palavras sobram
e para ti sou sempre nova
A beberes nem me recordas
Bebes-me nos recantos em que me escondo
onde a água tem cor de vinho
e os ventos estão desatentos
E eu espero a chorar e choro um pouco mais
pelo meu homem tranquilo e transparente
que me deseja num desejo mal contido
Apagas o gosto da noite triste e lenta
e tragas as horas que findam já gastas
em nevoeiros e desencantos demorados
Desalgema-te das minhas mãos
Todos os dias imperfeitos são meus eleitos
porque a tua perfeição era mentira.
Do outro lado
Quando o teu corpo sem vida se junta ao meu.
Perturba-me ouvir a tua voz que me impregna de frio
Quando a que penso ouvir é apenas um eco da minha.
Sem olhares para trás arrastas a minha sombra pelas águas
E carregas o meu corpo pelos campos
Até que me deixas abandonado em qualquer lugar
Onde me encolho e refugio no amor que por mim nunca sentiste.
Atravessa-me sem que eu te possa ver
Para que nem eu saiba do que morri.
Devolve-me a alma
Entraste no meu corpo excessivamente
E seguindo a minha vontade invadiste a minha casa
Arrancaste-me do chão rompendo-me a camisa.
E não tenho quem me cosa.
Traz a minha alma quando voltares.
Devolve-me a camisa rasgada.
Resgata-me do barco no meio do rio.
Eu que fui monotonamente abandonada ao meio-dia.
Que o meu corpo se transforme numa vela
E o vento do meu sofrimento me sopre para longe daqui.
Levarei na aragem o teu perfume, flagrante de mim.
E ficará nas águas o teu rasto distanciando-te de mim.
Sangue insano.
Deixa-me convencer os teus lábios de que dos meus recebes vida.
Desejei um mundo que só posso ver contigo.
Com os meus olhos nos teus, perdi-me de vista.
E não tenho quem me salve.
Resta-me apenas guardar e resguardar o nosso segredo
no escuro do frio,
Da noite antiga que se seguiu.
No escuro vou deixar de te ver
Subimos para o nosso esconderijo e tu roubas-me as roupas. E com elas vai errante o músculo que bate ansioso por ti em mim.
Deitada ao teu lado, o meu corpo é a extensão do teu. E pela janela semi-aberta vejo os ramos das árvores pouco nítidos contra a cor do céu. Contra a cor da tua cama.
Deixas-me o corpo dorido.
E descubro que nos teus lábios é o sabor da dor que me atrai.
Extrais-me o sangue em movimentos ritmados e roubas-me o corpo num assalto desigual.
Eu roubo-te as roupas. Tu roubas-me a alma.
Ladrão.
Quero-te
Pequenina
Vejo o metro como uma loja de perfumes. Sou constantemente canhoneada por cheiros que se misturam, provocando um efeito ainda mais derrubador. Inalo e exalo cada vez menos do ar conturbadamente perfumado e no intervalo automático descanso um pouco, para depois ser repetidamente atacada pelos perfumes que não são bem vindos. Maldigo a minha sorte. Difamo o metro. O início do dia. Quero morder as pessoas que usam perfumes. Apedrejo tudo.
Amuada, fecho os olhos e deixo de respirar. Escondo-me nesta cegueira imposta por mim, para folgar e abstrair-me de todos os olfactos e movimentos. De mal com a vida e com vontade de matar a velha, refugio-me no escuro até os meus pensamentos serem calados por sete batidas fortes em staccato. As sete pancadas sucessivas parecem aproximar-se e passo a ouvir a voz que as acompanha e que me faz abrir os olhos. Tenha a bondade de me auxiliar, por favor. – Diz o homem de óculos escuros, que lhe escurecem a paisagem sempre escura, com o braço esticado para a frente e a cabeça inclinada para trás, agarrando com a mão direita a bengala que o conduz.
Voltam as sete pancadas no chão, e eu sinto-me tão pequena que parece que caibo na palma da minha mão.
Silêncio frio
Fico aqui contigo.
Fico aqui contigo com o meu ouvido junto ao teu peito.
Escuto-te até que deixes de bater.
Até que me deixes de bater.
Até que me deixes finalmente morrer.
Voltei a acreditar em fadas
E esticas o teu dedo indicador encostando-o aos meus lábios.
Não conto, Amor. Mas voltei a pensar em fadas. Em pós mágicos. Em sapatinhos de cristal.
(Dizes-me) Shhh, guarda-nos para ti.
E a minha boca reage aconchegando-se à tua.
Não conto, Amor. Mas voltei a acreditar em fadas. Em vestidos prateados. Em príncipes encantados.
(Digo-te) Shhh, não contes tu também a ninguém. E o teu corpo volta a procurar o meu. Não contes, Amor. Porque eu voltei a falar com fadas. Voltei a sonhar com castelos. Porque a vida é um conto de fadas e eu tenho medo de quebrar o encantamento.
Escrevi-te
Tantas vezes aos gritos.
Tantas vezes em noites caladas.
E pedi.
Pedi tantas vezes que fosses meu.
Pedi tanto que fosses meu.
Só pedia que fosses meu.
Agora quero estar só.
Secar.
E amar este choro sem lágrimas
Composição
Agora tenho 25 anos, e aconteceu tudo tão depressa. Quero que a vida pare, e volte atrás só mais uma vez. Tenho saudades da criança que fui. Quero voltar a andar de bicicleta no parque, aos Domingos de manhã com o meu Pai. Quero voltar a ir uma vez por semana com a minha mãe ao cinema nas Amoreiras. Quero que me voltes a mandar reescrever um texto de página e meia só para fazer a letra f mais bonita. Quero voltar a espreguiçar-me no teu colo, enquanto me chamas de Salsa Parrilha, Panqueca Dourada ou de Meu Filho. Quero voltar a acreditar na bondade de todas as pessoas. Quero voltar a ficar nervosa com o primeiro dia de aulas. Quero voltar a discutir com os meus irmãos e acabar a chorar, e que o Pedro brinque comigo aos teatros. Pedro, brinca comigo aos teatros! Quero acordar aos Sábados bem cedo para ver os bonecos e voltar a ficar indecisa: brinco com os Legos ou com os Playmobis?
Agora, tenho 25 anos, e fico nervosa com o primeiro dia de trabalho. Já tenho casa, e já pago contas. Os meus irmãos casaram, o meu afilhado Marcos nasceu, e eu tenho o meu Amor comigo. Agora, dou jantares em minha casa com as mesmas cinco pessoas da minha vida, mais 4. Ponho eu a mesa, são 9 pratos e um deles é bem pequenino. As vezes, ainda vejo desenhos animados aos Sábados de manhã, e ainda discuto com os meus irmãos e choro. Ainda dou a mão quando atravesso a rua e ainda tenho o pulso fininho. Ainda demoro a adormecer. Vendo bem, sou a mesma criança que fui. Já não tenho saudades de mim. A vida é tão bonita como dantes, só diferente.
Ainda vais a tempo
Ainda queres tocar em tudo?
Ainda gritas quando estás feliz?
Ainda te deixas ficar encharcado à chuva?
Ainda te sentes a corar quando te despem de pensamentos?
Ainda gritas numa casa vazia para ouvires o eco da tua voz?
Ainda acordas com vontade de brincar?
Ainda te ris sem conseguires parar?
Ainda fazes castelos na areia?
Ainda acreditas em contos de fadas?
Ainda te apaixonas como se fosse a primeira vez?
Ainda corres para chegares mais cedo?
Ainda queres saber tudo?
Ainda te faltam as palavras?
Espero que ainda digas que sim.
Admiro os que nunca se habituam ao mundo.
Silêncios que te falam
Mais silêncios que palavras.
Palavras tímidas que se embrulham na minha língua.
Que se escondem nos meus dentes e não se deixam sair.
Para ti tenho palavras e silêncios.
Ortografias comprometidas. Sintaxes desconhecidas.
E tu sorris mesmo quando não ouves nada.
Lês-me entre silêncios.
Amas-me entre palavras.
De alma recolhida
Quando a luz já não o deixava ler, guardava o livro na cómoda e as mãos quietas debaixo do lençol. Fechava os olhos castanhos de tristezas tamanhas e inspirava fundo, desconfortavelmente bem fundo. Sentia dores nas pernas e comichão nos pés. Ignorando-as, recolhia as lágrimas que já lavavam os olhos, ajeitava a almofada e adormecia. As lágrimas juntavam-se e formavam rios, dos rios cresciam mares. E as sombras do vai-e-vem das cortinas continuavam.
De olhos fechados, o campo era largo, a noite escura e ele corria. Tinha 6 anos e brincava com os amigos aos invasores. Enquanto todos se defendiam ele atacava, porque a mãe sempre lhe disse que, A melhor defesa é um bom ataque. E ele sempre ouvia a mãe. Por isso, escondido atrás de pedras e buracos que faziam de trincheiras, soltava um grito de guerra e saltava vitorioso de espingarda na mão em forma de cajado, numa investida que lhe valeria depois uma cicatriz. A correr, saltou em falso e os pés e as mãos correram no ar, até caírem com o resto do corpo na vala. Arrancou os olhos do chão e depois as silvas das pernas e dos braços. Não chorou. A saliência estreita na perna direita passou a fazer parte dele. E para adormecer, enquanto uns contavam carneiros, ele passava a mão na cicatriz até adormecer.
A mãe entrou no quarto e disse, Bom dia. Ele não a ouviu. Abriu as cortinas do quarto e prendeu-as com as fitas. Deu-lhes dois laços. Queria que o Ricardo olhasse pela janela. Que ele ainda quisesse ver tudo, tocar em tudo. O Ricardo, que tinha os olhos nas pontas dos dedos. O Ricardo, que se entretinha a observar as pessoas e a calcular-lhes a vida pelos olhos, pelas roupas, pelo andar. Que corria em vez de andar. Que se ria em vez de sorrir. Prendeu as cortinas com as fitas e deu-lhes dois laços. Porque ela queria o Ricardo como ele era antes de ter tido o acidente. Antes de lhe terem amputado as duas pernas abaixo do joelho por causa de um acidente de mota. Antes de lhe terem cortado as pernas abaixo do joelho por causa de um homem que vinha em sentido contrário num carro roubado. Por causa de um homem que saiu ileso do acidente, sem uma cicatriz. Por causa de um homem que ainda pode andar e ainda conduz por estas estradas de Lisboa. O Ricardo ainda precisa de tempo para se habituar. Para se esquecer que teve pernas durante 21 anos ou para aprender a viver sem elas o resto da vida. Tens de reagir, disse-lhe a mãe ao prender as cortinas com as fitas. Ele não a ouviu. Não a ouve nem ouve ninguém. E com as dores do passado, deixa-se todas as noites adormecer. Mas temos de lhe dar tempo. Porque ele ainda sente dores nas pernas que não tem. Comichão nos pés que não tem. Ainda sente vontade de adormecer a passar a mão na cicatriz da perna que não tem.
Falta qualquer coisa neste texto para o fechar, mas não o consigo acabar. Mas a mim, só me faltam as palavras.
Casas
Há casas tipo casulos
Há casas tipo cápsulas
Há casas tipo campas
Há casas abandonadas
Há casas de campo
Há casas de cidade
Há casas abertas
Há casas com janelas
Há casas de bonecas
Há casas de miniatura
Há casas em papel
Há casas em playmobil
Há casas contigo
Há casas sem ti
Há casas comigo?
Está a chorar
Eu também não sei o que é a chuva.
O meu eu desencantado diz-nos,
É talvez o céu que chora.
A minha mãe costuma dizer
Acho isso muito estranho. Nunca ouvi falar de alguém que se tenha tentado suicidar com dois copitos de sumo de laranja.
És um pequeno leão?
Está bem, Simba. Hakuna matata para ti também. Neste momento estás muito instável, é um facto. Não sabes se hás de ser engenheiro, advogado ou o sucessor do Rei Leão. Já pensaste em não ser nada disso e ires viver para uma ilha deserta, pescares o teu peixe e agarrares os teus javalis. Já quiseste ser o lobisomem porque não te dás bem com o inverno. Já quiseste ser um assassino em série para depois escreveres um livro. Já quiseste ser ladrão e sonhaste que roubavas bancos internacionais aos fins de semana. Já experimentaste limpar vidros em arranha céus, já tentaste abastecer jactos em pleno ar, e já viajaste até ao pulmão do mundo só para veres ao vivo uma anaconda. Já te imaginaste a viver numa distante cidade do Oriente, mil e uma noites. Já sonhaste que encontravas um tesouro e roubavas quarenta ladrões. Já sonhaste que combatias incêndios florestais na Sibéria, que saías à noite pela cidade a cortar cabeças, ou que passavas os dias a demolir edifícios com centenas de euros em dinamite a teus pés. Já sentiste que voavas e tens medo de enlouquecer. Em pequeno fazias experiências pirómanas com formigas e enchias folhas e folhas com textos simulados quando ainda nem sabias escrever. Numa mesma semana quiseste ser actor, fotojornalista, e piloto de testes de avião. Já quiseste conduzir veículos pesados em pontes frágeis de madeira. Já quiseste ser o homem aranha. Já quiseste ser lenhador, correspondente de guerra, e bombeiro pára-quedista. Está bem. Neste momento ainda te sentes instável. Mas já sabes que queres ser copywriter e estás ansioso pela batalha final. Ou te cortam a cabeça, ou te tornas imortal.
O funeral foi meu, amor
A saudade ocupa a noite toda
Não me tragam flores, que eu sofro
Morri eu também a olhar para ti
Meti-me para dentro de mim
E fechei a janela
Os meus lábios sabem-me a antigo.
Nem na morte espero dormir
Vou andar pelo Mundo
Qual cadáver acordado
Porque me culpo
Os meus lábios sabem-me a antigo.
Acendo um cigarro
Se bem que não fumo
E a minha boca velada
Não dirá nada
Os meus lábios sabiam-me a antigo.
Sou feliz agora morta
Longe dessa prisão fechada
Que era o Mundo sem ti.
Ao Vinho
Dizem que nasceste por acaso
Talvez por uma mão-cheia
De uvas esmagadas e esquecidas
Dizem que és da cor da terra,
Da rosa e do sangue
Que tens a cor da noite e também a do dia
Dizem que moves os homens
Que apressas a Primavera
E que foste tu quem inventou a alegria
Encontra-te comigo hoje
E à luz de uma garrafa
Vamos dar a palavra aos pensamentos
E na próxima noite é a lua que nos procura.
Hoje quase sorri
Luanda
Com uma perna das calças
Enrolada de qualquer jeito
E sem serventia
Coxas que terminam de repente
E sapatos encaixados
Em pernas postiças
Cidade de cicatrizes e cruzes
Antes eras florida
Agora tens mortos de guerra
Plantados nos teus jardins
Os que ainda sobram estão sós
Exaustos e famintos
Arrastam-se pelas ruas imundas
E afastam as moscas que voltam
Uma história com final infeliz
É a nossa
Abriga-nos debaixo desta terra
Vermelha e ainda amada
Tem pena de nós
Tira-nos de vez o funje de cada dia
E deixa-nos sangrar até à morte
De Luanda já não me lembro
Mas deve ter sido bonita.
Abelha
Procura ter mais vida que a vida
E o seu zumbido é mais canto que outro canto qualquer.
O Amor é grande
feita de sol e de sombra
sai de mim, sai de mim.
Deixa-me aqui deitada em terra fria
para que eu possa seguir o vento quente
que passou por mim, uma vez.
E eu vou, juro que vou,
ter com o Amor que é bem maior do que os homens.
Vou, juro que vou,
porque eu quero brilhar no escuro
e sentir o mundo com as mãos
Sentir castelos na língua
E respirar odes em noites de fado.
Porque eu sonho com o etéreo
deitada em mantos de estrelas
Porque eu vivo do sonho e sonho com o eterno
Eternamente.
Porque eu vivo pelo amor, e sem ele,
Deito-me todas as noites num trono frio
De um reino vazio.