Hoje quase sorri

Os últimos meses têm sido bons, tenho quase sorrido. Mas incomodam-me esses quase. O que quase ganhou ainda pode perder porque ainda joga. O que quase partiu mas que continua no mesmo lugar. Se calhar sou cobarde. Podia decidir de uma vez por todas entre a alegria ou a tristeza. Mas esta vida a meio gás, o tempo que não passa nem depressa nem devagar, tem-me prisioneira. Gosto de pensar que não pertenço a lado nenhum. Que não tenho raízes. Que não tenho família nem amigos de infância que sabem qual era o meu jogo preferido, ou que se lembram das fitas que fazia quando era pequena. Gosto de pensar que não tenho passado. Nasci aqui em Lisboa e nasci com 30 anos. Aparentemente não sou casada porque vivo num quarto arrendado bem perto do café A Brasileira. Aparentemente também não tenho amigos porque sou muito solitária. Tenho as minhas rotinas e elas são cheias de nada ou de ninguém. Não vou tomar café com amigos, não tenho encontros com rapazes. Ninguém me conhece e eu não conheço o meu passado. Gosto de pensar que posso pegar na mochila e colocar lá dentro a única coisa que me interessa guardar. Aquela fotografia. Daquele momento que não recordo porque nasci com 30 anos. Daquele momento que não vivi porque apaguei de mim todas as memórias. Porque não me lembro. Não me lembro do que fiz, do que fizeste, do que eu fiz porque fizeste. Ou porque fiz o que tinha a fazer. Não me lembro, ou não me recordo, ou esforço-me para não me lembrar. Não te deixes errar outra vez, digo-me a mim própria. Ainda vou a tempo. Ainda vou a tempo porque ainda me lembro da última vez que sorri.