As minhas bonecas do orfanato

Tenho tido dores de cabeça toda a minha vida, ou melhor, desde os 7 anos. Desde aquele terrível acidente em que o comboio foi contra o nosso buggy e eu perdi a minha mãe. Foi num dia frio de Novembro. Eu tinha duas irmãs mais pequenas e vivíamos as quatro num apartamento pequeno do centro de Viena. O meu pai suicidou-se com veneno para matar ratos, durante o nosso chá das cinco. Eu adorava o chá das cinco. Eu era a dona da casa e sentava-me confortavelmente na poltrona. Perto de mim, o carrinho de chá. O meu pai ensinou-me a baixar o mindinho enquanto levava a chávena aos meus lábios repenicados. E eu pensava, não posso sorver nem ter o mindinho levantado. Não posso sorver nem ter o mindinho levantado. No carrinho tínhamos tudo o que precisávamos, o bule com chá quente, verde – o preferido do meu pai – um jarro com água aquecida, creme de leite fino, o açucareiro, um preto de rodelas de limão com um garfinho repousado, duas xícaras, colheres e guardanapos. No dia do último chá, o meu pai tinha-me trazido um pequeno jarro com rosas para dar um toque elegante. O chá das cinco acabou às cinco depois das cinco, quando o meu pai me disse que se estava a sentir mal. Tinha náuseas e passou a maior parte do nosso chá na casa de banho. Até que deve ter ligado para o hospital porque vieram buscá-lo e levaram-no para as emergências. Mas foi tarde demais. Os médicos suspeitaram de envenenamento por causa da rapidez com que os sintomas se manifestaram. Foi assim que eu perdi o meu pai, dois anos antes de perder a minha mãe. O próximo chá das cinco aconteceu com as minhas bonecas no orfanato, para onde eu e as minhas irmãs fomos levadas. Realmente é uma ironia o nome, porque não havia muita luz no orfanato. Estava sobreocupado e eu dividia a cama com uma outra rapariga da minha idade. Ninguém tinha brinquedos, e só havia um cobertor por cama. Eu e a Luísa cortámos com uma tesoura o nosso cobertor porque frequentemente uma de nós dormia descoberta e acordava com frio a meio da noite. Não éramos nós que éramos gordas. Era o cobertor que era insuficiente. Sempre me disseram que trariam as minhas bonecas de casa para mim, mas eu nunca as recebi. Estivemos no orfanato 4 anos. Nunca fomos adoptadas, talvez porque éramos muito velhas para isso, e os pais que apareciam lá queriam todos bebés. Os bebés choram, não dormem de noite, ficam mais vezes doentes, obrigam as mães a mudarem-lhes as fraldas constantemente, são totalmente dependentes deles e só dão trabalhos. Nunca percebi essa obsessão em adoptar bebés. Eu já tinha idade suficiente para cuidar de mim, lavava muito bem os dentes e ajudava as minhas irmãzinhas a tomarem banho, a vestirem-se, a comer, e nunca criava problemas com as outras crianças. Eu era uma criança perfeita, porque é que não me adoptavam? Só queria que aquelas criaturas indefesas desaparecessem. Na manhã do dia de Natal de 1990 acordei com os gritos histéricos das outras crianças. Em duas noites desapareceram 2 bebés. Eu tinha um esconderijo. Construí sozinha uma casa na árvore, dentro do campo do orfanato, claro. E era lá que eu tomava o chá das cinco com as novas bonecas que o orfanato me tinham dado. Um psicólogo todos os meses visitava o orfanato da Luz e nós éramos obrigadas a falar com ele. Eu e as minhas irmãs, porque tínhamos perdido os dois pais de maneira traumática. Usavam frequentemente essa palavra, que só mais tarde percebi o que significava. Abri um livro da biblioteca do orfanato que continha 20 livros, um dicionário e li que algo traumático estava relacionado a um trauma, e um trauma era um ferimento, e também um choque emocional violento que modifica a personalidade de um sujeito podendo desencadear problemas psíquicos. Fiquei na mesma, tinha 8 anos e não achava que estava diferente de antes. Só mais sozinha. No dia em que a minha mãe morreu esmagada pelo carro esmagado pelo comboio, ela tinha me ido buscar à escola mais cedo porque a reitoria estava farta dos meus esconderijos. Nunca perceberam a minha brincadeira. Eu escondia-me sempre no mesmo lugar, dentro de um armário da sala dos professores. Eles diziam que eu era desordeira e problemática. E perguntaram à minha mãe se eu tinha passado por alguma situação traumática. Foi a primeira vez que ouvi essa palavra mas dela só retive o final. Ática. A minha mãe contou-lhes do suicídio do meu pai e aparentemente essa foi a situação ática escolhida para justificar os meus esconderijos. Mas a minha mãe não me censurava. Ela percebia. Não me dizia uma palavra sobre isso. Tenho saudades dela. E das minhas bonecas, que acabei por ter de enterrar, porque estavam a apodrecer.